Newsletter: Receba notificações por email de novos textos publicados:

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

AÇORES: SALVEM O MONTE VERDE, ANTES QUE SEJA TARDE DEMAIS


As praias, pela sua localização na fronteira entre a terra e o mar, são dos ecossistemas mais sensíveis da natureza. A própria definição de “praia” incorpora essa permanente dinâmica estrutural, numa zona que os cientistas designam como a “interface” entre o ambiente aquático e o terrestre. Dizem-nos os manuais que uma praia é precisamente essa formação costeira composta por sedimentos não consolidados (como areia, cascalho, seixos ou fragmentos de conchas), depositados e constantemente retrabalhados pela ação das ondas, correntes e marés ao longo da margem de um corpo de água, seja mar, oceano ou rio.

Esta zona de fronteira estende-se à noção de surf, no seu sentido inglês, enquanto zona de rebentação que é a morada natural dos surfistas. É aí que vivem, se recriam e se alimentam (em todos os sentidos), usando as ondas e o areal como habitat e forma de expressão. Poucos terão um conhecimento tão vivido e íntimo deste ambiente natural como os surfistas.

A praia do Monte Verde, que em tempos foi mais do que uma praia, mas um vasto sistema dunar que se estendia da linha de rebentação até bem dentro do que é hoje o limite urbano da Ribeira Grande, é um ecossistema especialmente sensível. Não só pela sua localização urbana e exposição a norte, recebendo as principais ondulações que atingem o arquipélago, mas também, e sobretudo, por ser alimentada por três cursos de água que ali desaguam.

O elemento fundamental das praias é a sua dinâmica sedimentar, a forma como os sedimentos estão em constante movimento, trabalhados pelas ondulações e marés. No caso do Monte Verde, os cursos de água desempenham aqui um papel essencial, ao alimentarem este sistema com sedimentos. As ribeiras transportam areia, cascalho e outros materiais desde o interior até à praia. Esses sedimentos repõem a areia perdida pelas ondas e tempestades, mantendo o perfil e largura da praia. Sem esse aporte contínuo, muitas praias tenderiam a desaparecer por erosão marinha.

Além disso, o fluxo de água doce pode formar canais, lagoas temporárias ou deltas na zona de desembocadura, moldando a configuração da praia. Na maré baixa, as ribeiras escavam sulcos na areia que são depois alargados pela erosão hídrica. Esses canais mudam de forma e posição ao longo do tempo, como se pode observar no Monte Verde com a ação da Levada da Condessa.

Estes processos são também cruciais para a formação dos bancos de areia subaquáticos, que são a base das ondas. Se o vento é o pai, os fundos marinhos (ou as praias) são a mãe de todas as ondas. E tocá-los, como os surfistas bem sabem, pode ser uma bênção… ou uma maldição.

Em todo o mundo, há exemplos de reefs artificiais ou bancos de areia construídos com o propósito de criar ondas ou proteger ecossistemas litorais. Na Figueira da Foz, vive-se atualmente um processo desses. À sua escala, o Monte Verde é também um exemplo paradigmático desta realidade. Daí a importância extrema de avaliar com rigor qualquer intervenção na praia, no antigo sistema dunar e, logicamente, nos três cursos de água: a Ribeira Grande, a Ribeira Seca e a Levada da Condessa (um canal artificial, com mais de 500 anos de história e influência sobre a praia).

Nem sequer entrarei agora na importância ecológica desta dinâmica entre praia, duna, ribeiras e mar, no transporte de nutrientes, manutenção de habitats, regulação hídrica e proteção costeira. Ou, pelo contrário, nos malefícios da poluição que frequentemente chega ao mar pelas ribeiras.

Vem todo este arrazoado a propósito do tão falado passeio marítimo, recentemente ressuscitado em contexto eleitoral, como tentativa de justificar ações (ou omissões) políticas, passadas e presentes. Não são poucas as vezes em que vontades políticas misturadas com ganância de empreiteiros serviram mais para destruir ecossistemas do que para os proteger. E aqui, arriscamo-nos a assistir a mais uma intervenção costeira potencialmente desastrosa numa praia cuja principal mais-valia são as suas ondas e o seu potencial para o ensino e prática do surf, durante todo o ano e com especial intensidade no verão.

As construções nestas zonas, já de si frágeis, são perigosas e devem ser pensadas com extrema sensibilidade. Um simples muro pode alterar profundamente a dinâmica natural dos sedimentos. Estruturas rígidas como muros ou passeios interrompem o transporte e redistribuição de areia entre praia, ribeira e dunas. Isso leva à erosão acelerada e à perda progressiva da faixa de praia, uma vez que os sedimentos deixam de ser renovados pelas ribeiras e correntes marinhas.

Interromper o fluxo das ribeiras é igualmente perigoso. Ao cortar o acesso da água ao mar, essas construções podem provocar assoreamento, inundações, degradação de habitats e retenção de poluentes, perdendo-se zonas filtrantes naturais fundamentais para a qualidade da água. O impacto na sedimentação e na formação dos bancos de areia é imediato. Basta ir hoje ao Monte Verde para ver como a simples deslocação de poucos metros na saída da levada alterou substancialmente a configuração da praia e dos bancos de areia. Para já, parece ter corrido bem, mas quem sabe como será no futuro…

A construção de muros e acessos na zona dunar, como previsto nas imagens divulgadas da obra, também interfere com o sistema de ventos que alimenta as dunas. Os ventos transportam areia e sem eles, as dunas não se formam nem se mantêm. Isto pode resultar na perda desta barreira natural contra tempestades, erosão costeira e avanço do mar. Veja-se o exemplo da zona onde está instalado o contentor sanitário para se perceber estes impactos.

Ninguém é contra a requalificação ou a abertura da praia à cidade. Mas é preciso que essas ações integrem a praia num habitat mais vasto, como defendemos na petição SOS Monte Verde. Este sistema vai desde o oceano até à Lagoa do Fogo, incluindo ribeiras e cidade. A praia do Monte Verde tem de ser pensada com a mesma lógica holística que foi aplicada às bacias hidrográficas das lagoas. E não serve de nada fazer “requalificações” urbanas se não se resolver o que está a montante, nomeadamente as ribeiras.

Obras rígidas como passeios e muros produzem frequentemente impactos irreversíveis na zona costeira. Bloqueiam os processos naturais, destroem a resiliência ecológica e aumentam a vulnerabilidade da praia e das comunidades locais. No caso das ondas e dos surfistas, os impactos são ainda mais visíveis.

Uma abordagem sustentável exige soluções baseadas na natureza. Isso significa preservar a largura funcional das praias, manter a continuidade do sistema duna-ribeira, e permitir que a morfodinâmica costeira se adapte às mudanças ambientais. Sem estas preocupações, qualquer intervenção arrisca-se a destruir mais do que melhorar.

Bem sei que estamos todos mais entusiasmados em curtir o MEO Monte Verde e os Portugal. The Man do que em salvar verdadeiramente a Praia do Monte Verde. Mas, entre um copo e outro, pensem nisto enquanto estiverem a dançar num palco onde antes havia areia, duna e a essência de uma praia que está em risco de desaparecer.

Como dizia um velho slogan de uma marca de surfwear: Destruam as ondas, não as praias. Com o foco, aqui, na “destruição” das manobras do que na destruição das obras…

Salvem o Monte Verde, antes que seja tarde demais.


2 comentários:

OLima disse...

Este processo, na verdade, tem muitas décadas. Começou talvez com a construção do malfadado molhe de proteção das piscinas da Ribeira Grande, de que falava há dias o meu querido amigo Luís Melo, aqui num comentário, e que ele, eu, o Hugo Valente e o Carlos “Perna” Gouveia tentámos, mais ou menos em vão, contrariar. Feliz ou infelizmente, o mar acabou por nos dar razão, a obra destruiu a onda que ali havia e provocou um enorme assoreamento naquela zona, onde, no projeto, existia uma rampa de vareio de embarcações existe agora uma pequena e aprazível praia.
Mas, mesmo antes disso, alguns movimentos ambientalistas e vozes avisadas, como o João Brilhante ou os Amigos dos Açores, apenas para dar dois exemplos, foram paulatinamente alertando para a mais-valia da praia do Monte Verde e para a necessidade de a defender. (...)
Quando, em setembro de 2024, lançámos a petição SOS Monte Verde, a intenção era, mais uma vez, chamar a atenção para os problemas que ainda subsistem na praia. (...)
Como é sabido, tudo isto caiu em saco roto. Nem Câmara, nem deputados, nem Governo, que apenas foi ao Parlamento garantir que já fazia tudo ao seu alcance, deram qualquer importância ao que propusemos. (...)
Foi este laxismo que nos levou a remeter a petição ao Parlamento Europeu, conscientes, obviamente, tanto das consequências de tal ato como do calendário eleitoral. (...)
Mas o problema, e há sempre um “mas” nestas coisas, é que anunciar, a dois meses de eleições, uma comissão para acompanhar não se sabe bem o quê, é como prometer um eclipse num dia de nevoeiro. (...)
A pergunta que é preciso fazer é: acompanhar o quê? Monitorizar que medidas, se não é anunciada nenhuma? Procurar soluções, quando os problemas estão identificados e, mais ainda, quando os prevaricadores também estão sinalizados? As soluções já as propusemos nós, de forma modesta, mas honesta e cientificamente fundamentada. Só falta implementá-las e ter a coragem de as pôr no terreno. Não é vir agora, no tempo de compensação, dizer que se vai “estudar e monitorizar” o problema, como aqueles treinadores que, a dois minutos do fim do jogo, quando estão a perder, metem mais um avançado apenas para acalmar os adeptos.
Sobre comissões e porque também está na ordem do dia deixem que vos conte o que se passou aqui ao meu lado, no sul da ilha, por causa do Ilhéu da Vila. Em 2020, quando as primeiras análises começaram a dar resultados preocupantes na piscina do Ilhéu, também as autoridades anunciaram, com pompa, a criação de uma comissão interdepartamental para estudar e resolver o problema. Câmara, Governo, Ambiente, Mar, Clube Naval, Delegado de Saúde e não sei quantos especialistas prometeram tudo: desde a descodificação do ADN das fezes ao controlo de gaivotas, garajaus, melros e canários, passando por obras no emissário submarino e requalificação dos sanitários (perguntem como é feita a sua limpeza…). Um sem-número de medidas que, quatro anos depois, redundaram no fecho do Ilhéu a banhos. Não se conhece uma ata, um relatório ou sequer uma solução efetiva para um problema que tiveram quatro anos para resolver e que deixaram andar até este desfecho feito de incompetência e ignorância, certos de que ele haveria de se resolver sozinho, é mais ou menos como eu que, todas as semanas, espero ganhar o Euromilhões, mesmo quando me esqueço de jogar.
Brincar às comissões é muito bonito, mas o que faz falta é coragem para não andar no jogo político e enfrentar os problemas com vontade de os resolver. Caso contrário, mais vale arquivar mais esta comissão no dossier sem fundo das “promessas eleitorais” e esperar que o mundo, afinal, seja quadrado.
Pedro Arruda.
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=pfbid096fsWyT9yshfhDjagBiEw1Rzx7W4MTpqAy6L8Qwqkm46QzZxBsYrsdYQXq4uJKvpl&id=100008012238537

OLima disse...

A situação do Monte Verde prolonga-se há décadas e, nos últimos anos, com sucessivas promessas dos organismos públicos responsáveis de ação e resolução que nunca chega.
No âmbito da petição SOS Monte Verde foi com agrado e, confesso, alguma surpresa e expectativa que assistimos aos trabalhos da Comissão Parlamentar de ambiente que se desdobrou em audições e visitas naquilo que parecia ser um genuíno interesse em compreender o problema e as soluções propostas, que não passavam por proibições ou expropriações, como alguns defenderam, mas por soluções de equilíbrio, viáveis e equitativas.
O resultado foi um relatório que abdicou da sua prerrogativa de propositura ou, sequer, de recomendação ao governo, tal como o debate parlamentar que se seguiu, num claro desconsiderar deste instrumento de democracia participativa que é uma Petição. Algo aliás recorrente no parlamento regional, o que os deputados não percebem é que com isso não estão apenas a desprezar os cidadãos mas a própria democracia que deviam defender.
Nem por acaso em julho último a praia do Monte Verde voltou a ser interditada tal como voltará a ser no futuro enquanto não houver vontade ou coragem de solucionar definitivamente este problema.
É com tristeza, mas com a certeza de que estamos a fazer o que é correto que tomamos este passo, já que os responsáveis locais não querem solucionar o problema, e que apelamos à União Europeia para que actue com urgência e que não seja só instrumento de derramar dinheiro sobre os problemas…
Pedro Arruda.
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=pfbid0ZYewrQvuw4akzPbifaCJNNCAk7iqCHyUtUdtB3AeGAgTnJkE2buMs6d8YSL5Pf4Pl&id=100008012238537