quarta-feira, 21 de agosto de 2024

REFLEXÃO: "LAURISSILVA DA MADEIRA - OS MILHÕES DOS TURISTAS E A MEMÓRIA ECOLÓGICA VÃO-SE EM FUMO"

“O incêndio que começou na passada quarta-feira, dia 14 de agosto, na Madeira, tornou-se imenso e consumiu já uma parte importante de Laurissilva. Esta floresta exclusivamente insular, no contexto da Europa, é original e valiosa por várias e importantes razões. É um tipo de floresta-relíquia, que retém muitas espécies e caraterísticas ecológicas das antigas florestas tropicais que se estendiam em redor da região do atual mar Mediterrâneo entre vinte e três milhões de anos atrás. Convulsões geológicas e climáticas violentas posteriores destruíram-na no continente europeu e deram vez à vegetação mediterrânica e que conhecemos. Mas a Laurissilva sobreviveu protegida, um pouco modificada, nas ilhas dos Açores, Madeira, Canárias. A sua evolução isolada deu origem também a muitas espécies absolutamente exclusivas, ditas “endémicas”. Por isso, a Laurissilva da Madeira foi classificada como Património Mundial Natural da UNESCO em dezembro de 1999.

Para além da importância científica e de conservação que tem, a Laurissilva oferece muitos tipos de valores. Pode soar esotérico, mas o primeiro é o direito a existir das plantas e animais que a constituem. Para além disso, de forma antropocêntrica, a quantidade de serviços, os chamados ‘serviços de ecossistema’, que os clientes humanos usufruem da Laurissilva é grande. A começar pelos habitantes da Madeira. Esta é uma floresta ‘produtora’ de água, de proteção das encostas contra a erosão, de biodiversidade, de beleza e, enfim, de muitos milhões de euros. É que percorrer a frondosa Laurissilva da Madeira sob tis, loureiros, barbuzanos, urzes gigantes e vistosas plantas floridas, através das levadas, é uma experiência de fruição sensorial, estética e espiritual com poucos equivalentes no mundo. E é para poder passear nesta floresta que uma parte muito grande dos turistas visita a Madeira. É para fruir da Laurissilva. As levadas e veredas de montanha têm verdadeiros engarrafamentos de caminhantes quase no ano inteiro. E os caminhantes fascinados deixam muitos milhões de euros anualmente na região, nos restaurantes, nos hotéis, nas empresas de turismo. Que deviam os turistas pagar taxas maiores por este usufruto, em função da pressão que representam sobre o recurso, é uma outra questão; mas certo é que, direta ou indiretamente, a contribuição da Laurissilva para a economia da Madeira é mesmo de muitos, mas muitos, milhões. Um dia de vento seco e temperatura alta é um acidente à espera de acontecer. Por isso, não é impossível que causas naturais ou acidentais possam ter causado a destruição de um dos três maiores núcleos de Laurissilva da ilha. O que é inaceitável é que, de vários pontos de vista, a Laurissilva, como capital natural não seja contrapesada com suposto respeito, por hábitos, direitos populares e comportamentos atávicos associados a fogos acidentais, como aqueles de fazer queimadas ou lançar foguetes em festejos. Mesmo não sabendo nós a causa das ignições, deveria ser uma questão indiscutível de brio coletivo a abstinência de fogo em dias de verão. Mais, nestas condições meteorológicas, quem compreende ser de esperar outra atitude das autoridades senão a de tentar conter o incêndio enquanto este é pequeno e com todos os meios disponíveis? Os critérios da decisão serão múltiplos, mas, enfim, os responsáveis da administração e governantes na Madeira não farão contas? A Laurissilva na Madeira atrai os turistas e o seu dinheiro, mas parece ser encarada pelo poder regional como pouco mais do que um recurso explorado de forma extrativa, daqueles em que não se investe o mínimo dos mínimos. O investimento esperado seria em meios de prevenção, combate a incêndios e em estratégia. Todos se mostraram desadequados e as decisões resultam perdulárias.

A metáfora da galinha dos ovos de ouro nem se aplica aqui à floresta Laurissilva, porque neste caso a galinha morre desprezada. Pessoalmente nem acredito que é possível monetarizar em absoluto os ecossistemas, mas ele há dimensões em que admito ser necessário fazê-lo e esta é uma delas. A nota pessoal é que já vai em quase 30 anos que estudo a Laurissilva da Madeira e quando lá estou relembro sempre a primeira vez que a vi, atónito e sem fala, de bela que era. E por isso, o pior de tudo é o que dói, por dentro, ver a antiga, maravilhosa e única Laurissilva desaparecer assim em fumo.”

Jorge Capelo, Laurissilva da Madeira: os milhões dos turistas e a memória ecológica vão-se em fumo – Público 20ago2024

Apostilha: os cerca de 4 milhões de euros que o grande herói madeirense fatura semanalmente não chegariam para ele oferecer à Madeira um helicóptero de combate aos fogos?

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