sábado, 27 de julho de 2024

‘QUANDO PORTUGAL ARDEU’ 31


“’Eu [escultor Francisco Simões] era jovem, impreparado como professor, embora tivesse a intuição e leituras a meu favor. E lembrava-me dos meninos que desmaiavam. Os professores tinham o 7.º ano do liceu, nunca tinham tido dinheiro para estudar em Lisboa. Criámos uma comunidade em que a família era parte da escola. Nunca senti desconforto, pelo contrário. Os pais ajudaram a arranjar o campo. Na disciplina de Trabalhos Manuais, que eu chamava «atividades úteis», em vez de gastarmos dinheiro em cartolinas e papéis, cavámos uma horta. Tínhamos morangos, cenouras, fazíamos sumos. Criámos trutas, coelhos e até havia uma vaca. Era uma escola comunitária, com uma noção de democracia muito intensa, onde até usava a matemática para gerir a venda dos produtos. O dinheiro servia para comprar roupas para os alunos. Eram eles que decidiam quem mais necessitava, não eram os professores. Mas não havia caridadezinha. Ganhavam o dinheiro deles, o respeito pela noção de trabalho, de ética. Mesmo o professor de Moral, o padre Ramos, com quem também conversei, entendeu isto. Disse-lhe que não tinha nada contra os mandamentos, o Pai-Nosso, a Ave-Maria, mas fiz-lhe ver que a catequese devia estar fora da escola. O que eu pretendia para a disciplina de Religião e Moral era ensinar o civismo e o respeito pelos mais desfavorecidos. Ele concordou, foi impecável.’”

Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu (2017) – Oficina do Livro 2022, p 195.

Sem comentários: