Ponta dos Rosais - São Jorge, Açores. Foto: Paulo Machado
3jun2018.
«(…) É preciso deitar por terra um mito importante: uma floresta não é um sumidouro de carbono só por si. Quando olhamos para as áreas florestais portuguesas isso torna-se claro. Uma área florestal estabilizada, composta por múltiplas espécies que interagem entre si, com capacidade de retenção de solos e água, pode ser de facto um sumidouro de carbono, retendo-o nas suas raízes, no solo com que interage, no seu tronco, nas suas folhas, durante décadas ou até séculos. Uma área florestada com espécies de crescimento rápido, instalada com mobilização e fertilização de solos, “tratada” com agro-químicos, cortada uma dúzia de anos depois, com enorme potencial de arder nessa dúzia de anos não é um sumidouro de carbono. O carbono que retém será perdido assim que for processado numa fábrica, seja ela para produzir pasta de papel ou energia, o que manifestamente ocorrerá em pouco mais do que uma década. A diferenciação entre conceitos de floresta, aceitando ou não a presença de plantações florestais, é central para a questão de ser ou não sumidouro de carbono: Portugal aceita o conceito oficial da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), que inclui as plantações florestais de espécies exóticas (e em Portugal estas predominam em área). Considerando a maneira como são geridas estas plantações, em Portugal é absurdo considerar as suas áreas florestais actuais como um sumidouro de carbono. Não são. E isto ainda sem sequer falar de incêndios florestais.
Dizer que se vai apostar no papel da floresta (plantações incluídas) para a descarbonização da sociedade portuguesa é totalmente incompatível com qualquer ideia de expandir as áreas de plantações florestais, em particular de eucalipto. Entende-se a dificuldade da governação em gerir esta bipolaridade, entre a redução de emissões e a disseminação de “fósforos” pelo território nacional, conhecidas que são as portas giratórias entre o poder político e as celuloses em Portugal. Parte dos intervenientes no debate sobre o papel da floresta na descarbonização da sociedade enfermam deste vício. Não foi por isso de estranhar então um debate recente do Roteiro para a Neutralidade de Carbono 2050, em que o debate acerca do contributo da floresta para a neutralidade carbónica foi totalmente dominado pelos interesses das celuloses e dos defensores de grandes regadios (e o interesse das celuloses em começar a regar eucalipto já é notório e público).
O absurdo de defender a queima de biomassa florestal como medida de mitigação das alterações climáticas em Portugal é um exercício muito esforçado para esconder realidades: a enormidade dos incêndios florestais, a evidente desflorestação, a escassez de água e o predomínio total no território nacional de plantações de espécies exóticas e invasoras.
De acordo com os dados do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, só entre 1 de Janeiro de 2016 e meados de 2017 (a 30 de Junho) foi validada e autorizada a expansão da área de plantações de eucalipto em novos 5657 hectares. Ou seja, o actual Governo é responsável por 57% das novas áreas de eucaliptal validadas e autorizadas no âmbito do regime jurídico aprovado em 2013 (a “lei dos eucaliptos”). Apesar da Estratégia Nacional para a Floresta, aprovada em 2015, limitar a 2030 a área de eucalipto em Portugal a 812 mil hectares, o facto é que, de acordo com a FAO, a área de plantações de exóticas em Portugal ascendia, em 2015, aos 900 mil hectares.
É clara a tendência de envolvimento crescente dos povoamentos florestais nos incêndios rurais. Desde a aprovação da Lei de Bases da Política Florestal, em 1996, que essa tendência é crescente. O facto regista-se apesar de o país se confrontar com uma situação de desflorestação, ou seja, de mudança do uso do solo de floresta para outras ocupações, maioritariamente para matos. Esta tendência crescente ocorre em simultâneo com a redução da área de pinheiro-bravo, segundo os dados do Inventário Florestal Nacional, e do crescimento da área de eucalipto (defendida esta última como cultura de rentabilidade para os pequenos proprietários, embora os dados de rendimento agrícola neguem esta ideia). Acontece, porém, que, mesmo neste último caso, quanto maior a área de eucalipto, mais se regista o seu envolvimento na área ardida total e na área ardida em floresta. Apesar de em 2017, sobretudo com os incêndios de Outubro, se ter identificado uma enorme área de pinhal bravo ardido, onde o património do Estado assume destaque, o eucaliptal terá atingido a maior área ardida até hoje registada em Portugal, na ordem dos 90 mil hectares, superior ao registado em 2003. Se, em 1996, a área de eucalipto estava envolvida em cerca de 3% da área ardida total e em cerca de 13% da área ardida em floresta, em 2016 as percentagens respectivas foram de 24% e 50% e em 2017 (dados provisórios) de 19% e 39%. Não existe nenhum sumidouro de carbono quando ardem áreas enormes de plantações florestais – o que existe é mais um grande emissor de carbono. Essa é a realidade que nos é legada por áreas florestais abandonadas e eucaliptizadas.
No rescaldo dos incêndios do ano passado passou a estar na moda falar de queimar biomassa para produzir energia, como se isso servisse para combater incêndios. Não serve. Passou também a falar-se de biorrefinarias para transformar madeira em combustível para meter nos depósitos dos automóveis, como se isso servisse para, de alguma modo, combater incêndios. Não serve. Perante o enorme drama humano e a destruição dos incêndios de 2017, o oportunismo tomou conta dos acontecimentos e, em vez de se procurar soluções para resolver a questão dos incêndios, procuraram-se novas maneiras de fazer dinheiro, com o enorme favor do Estado. Tanto para a questão do combate às alterações climáticas como para o combate aos incêndios florestais, a queima de biomassa é uma biofarsa. Para culminar este processo, a ideia mirabolante de criar um “novo Alqueva” no Tejo, o chamado “Projecto Tejo”, ignorando olimpicamente os impactos ambientais negativos que a intensificação agrícola associada ao próprio Alqueva está a ter sobre o Alentejo. Não nos devemos iludir acerca da possibilidade de este projecto vir a servir para regar eucaliptos para queima e celulose – é seguramente parte do plano. O nível de ilusão acerca de rendimentos futuros assume nos dias de hoje contornos criminosos: usar os nossos recursos em declínio como a água, os solos e a biomassa para queimar só servirá para dar dinheiro a meia dúzia de grupos económicos e consultoras. Não combaterá incêndios, não conservará solos e água, não contribuirá de maneira alguma para a descarbonização ou para combater as alterações climáticas. A única coisa que faria tudo isso era criar e gerir uma verdadeira floresta, de múltiplas espécies, múltiplos usos, apoio aos produtores e que servisse para sustentar uma população rural.»
João Camargo e Paulo Pimenta de Castro, in Floresta e descarbonização: biomassa ou biofarsa? – Público 7jun2018.
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