Marcelo considerou a cimeira dos oceanos um enorme sucesso, titula a nossa RTP, como se não tivesse sido o nosso presidente a encerrar, com o seu discurso, tão nobre evento. Porém, observadores mais atentos não foram em cantigas:
«A Cimeira dos Oceanos realizada em Brest foi uma reunião
inútil, cheia de conversas e supostas boas intenções. O foco dos participantes
foi mais como ganhar dinheiro com a crise climática do que como proteger os
oceanos.
Mais do que uma cimeira, a One Ocean Summit em Brest foi uma plataforma de rede. Os contactos comerciais multiplicaram-se certamente no que mais parecia uma feira tecno-optimista de invenções do que uma reunião global sobre ecologia. Todos falaram de combustíveis e máquinas milagrosas que podem reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. Vejamos um exemplo. A Blue Climate Initiative (um programa patrocinado pela Tetiaroa Society, um projeto de eco-hotel fundado por Marlon Brando no seu atol na Polinésia francesa) anunciou um prémio de $1 milhão de dólares para três projetos de tecnologia relacionada com o mar, centrados na redução de emissões. Um deles é um suplemento alimentar feito de algas que pode reduzir, dizem eles, 90% do metano emitido pelo gado. Outro baseia-se na substituição do plástico por um material também feito de algas. E, finalmente, há a inevitável quimera de captura de gás, uma máquina que utiliza sargassum (outra alga) não só para capturar CO2 mas também para produzir energia.
Não que nenhuma destas invenções seja insignificante. Pelo contrário, tudo o que faz avançar a ciência deve ser aplaudido. Mas talvez todos estes avanços sejam árvores que obscurecem a floresta. As vacas poderiam efetivamente tomar pílulas à base de feno que as tornassem menos poluentes, mas para quê? Para acrescentar mais cabeças ao rebanho mundial para que possamos comer mais carne e assim expandir ainda mais a criação de gado num planeta que está a perder hectares de floresta tropical a uma velocidade vertiginosa para se tornar uma terra de pastagens? Não faria mais sentido reduzir o consumo de carne e inverter a desflorestação? Este é, de certa forma, o paradoxo que marcou toda a cimeira de Brest: foi basicamente uma reunião de empresários e investidores para descobrir como podem continuar as suas atividades poluentes, agarrando-se ao mito da tecnologia.
O conceito mais repetido foi o da "economia
azul", que seria o equivalente marítimo da "economia verde". É
também sustentado pelo mito do desenvolvimento sustentável. Em termos simples,
o desenvolvimento sustentável é a crença de que podemos continuar a crescer ao
mesmo ritmo que antes e fazê-lo sem poluir se alterarmos alguns padrões de
produção e encontrarmos soluções tecnológicas. É um artigo de fé baseado em
nada, que não pode ser apoiado por dados científicos. E se, além disso,
quisermos encaixar o conceito numa redução imediata, urgente, necessária, quase
desesperada dos gases com efeito de estufa, e isso é algo que tem de ser feito
agora, antes de 2030, falar de desenvolvimento sustentável é uma piada.
Dentro do extravagante conceito de "economia
azul" falou-se também de "turismo sustentável". Outro mito que
as grandes cadeias de hotéis e empresas de cruzeiros foram publicitar.
Porta-vozes do Club Med, Accor e Costa Cruises, entre outros, proferiram
discursos delirantes sobre o seu empenho em reduzir o impacto ambiental das
suas atividades. A maior parte do seu tempo foi gasto enfatizando que querem
reduzir o plástico, especialmente o plástico de utilização única. E
apresentaram isto como uma novidade, como se não fosse uma diretiva europeia já
em vigor.
A base de tudo o que lá foi discutido foi o interesse
económico. Não se tratou de acertar contas com a natureza, confessar os nossos
pecados climáticos e tentar emendar a situação. Não. Os oceanos têm de ser
saudáveis porque isso torna-os mais rentáveis. Foi isto que Pierre Karleskind,
presidente da comissão das pescas do Parlamento Europeu, disse literalmente:
"Se os ecossistemas marinhos forem saudáveis, são mais produtivos". O
mar é um recurso para o capital, tal como a força de trabalho. A saúde ou
doença do trabalhador será de interesse para o seu empregador de acordo com o
seu efeito sobre a produtividade. O mesmo se passa com o mar. As baleias ou
tartarugas ou recifes de coral ou qualquer outra espécie em vias de extinção
não têm qualquer interesse per se.
No ultimo dia da cimeira, Macron apareceu com o melhor dos sorrisos. E com a sua habilidade dialética que o carateriza, conseguiu condensar a inútil reunião de Brest em quatro objetivos: proteger os ecossistemas marinhos e promover a pesca sustentável, combater a poluição de plástico, travar as alterações climáticas e melhorar a governança dos oceanos. Este último ponto é particularmente sensível do ponto de vista geopolítico porque se trata simplesmente de saber quem manda no alto mar. O facto de as águas internacionais não terem dono torna difícil o combate à poluição do ecossistema marinho, lamentaram todos os presentes... enquanto afiam as suas garras. Macron, num ataque de lirismo, chamou a estas águas "o continente escondido". E era inevitável relembrar a Conferência de Berlim, quando as potências europeias dividiram o continente africano.
Evidentemente, nenhuma das discussões em Brest resultou em
qualquer acordo tangível. A questão do plástico será discutida na Assembleia do
Ambiente da ONU em Nairobi, a 28 de fevereiro. A governança dos oceanos
continuará a ser discutida na ONU; já lá vão dez anos. Criar uma réplica
digital dos oceanos para melhor mapear e monitorizar os seus recursos é outro
projeto europeu a longo prazo, sem data fixa. Proteger 30% dos oceanos até 2030
requer uma coligação internacional que parece muito distante e, em qualquer
caso, não é um objetivo demasiado ambicioso. E é tudo.
John Kerry, representante de Joe Biden, fez um dos discursos
mais fortes e menos complacentes na cimeira. Mas caiu na mesma armadilha,
citando a Amazon, United Airlines, Cemex e Volvo como exemplos de compromisso
verde simplesmente porque na COP26 em Glasgow se juntaram a uma coligação que
supostamente promove a inovação tecnológica no campo da energia limpa. E
encorajou todas as empresas, especialmente as envolvidas na navegação, a fazer
o mesmo. Mas o que significa exatamente encorajar? Será apenas voluntarismo? Ou
dito de outra forma: para que servem os governos: para encorajar ou para
legislar? Será possível que o capitalismo tenha pirateado as democracias
ocidentais ao ponto de as empresas poderem fazer o que lhes apetece? A questão
é obviamente retórica.
No último dia, Érik Orsenna, escritor, conhecedor do mar e académico, leu ao plenário um pequeno texto literário para dizer aos participantes, da forma mais educada possível, o que pensava da cimeira realizada na emblemática cidade portuária de Brest: "Ouçam, todos vós, e ouçam bem o que essa ondulação nos diz: ‘Caras Senhoras e Senhores, se não vieram com actos, porque viajaram em tão grande número e com tão luxuosa bagagem? Sigam o caminho por onde vieram, regressem aos vossos palácios e deixem o oceano em paz’. O que estamos a tratar aqui em Brest não tem nada a ver com turismo ou diplomacia. Trata-se de uma ameaça. É também um desperdício de dinheiro se não decidirmos nada, ou se decidirmos algo mas não o implementarmos. Ou se o implementarmos demasiado tarde.”»
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