«Dos muitos debates que têm surgido à volta da situação
actual em Odemira, poucos se debruçam sobre o modelo produtivo que se aplica ao
perímetro de rega do Mira, ao Alqueva, a vários locais do Algarve ou às vastas
estufas de Almeria, em Espanha. Este modelo agrícola industrial hiper-intensivo
tende à exploração máxima simultânea da mão-de-obra, do território e dos
recursos naturais. Em muitos casos, este modelo implica derrubar ou ignorar
deliberadamente leis e convenções humanas, nomeadamente sobre a exploração
laboral e o tráfico de seres humanos. O capitalismo procura incessantemente
derrubar e ampliar as fronteiras de exploração, e este caso revela exactamente
isso. (…)
Os modelos de produção agrícola que incluem mão-de-obra
migrante ilegal e até escravizada não são, de maneira alguma, exclusivo de
Portugal. Ao contrário da retórica formal, os trabalhadores não são “atraídos”
pelo trabalho. As grandes estratégias agrícolas, articuladas entre governos e
empresas, criam as condições para este modelo. O sistema é montado para uma
exploração hiper-intensiva de pessoas, químicos e água. Os frutos vermelhos são
famosos devido à mão-de-obra intensiva necessária para a sua apanha, mas em
várias outras colheitas, especialmente as menos mecanizadas, a regra também é a
da exploração máxima. O bairro de lata ou os amontoados de contentores são o
espelho da miséria humana que se instalam ao lado das estufas que são em boa
medida espelhos de miséria ambiental. Com pagamentos horários inferiores ao
salário mínimo (apesar de ninguém cumprir os horários de trabalho legais), a
escravatura efectiva-se também pela cobrança de pagamento da habitação, dos
transportes e da comida a preço exorbitante aos intermediários, pelo roubo de
documentação e pela falta de capacidade de partir. Todos estes aspectos são
organizados por intermediários que trabalham para empresas agrícolas nacionais
e internacionais.
Assim, não é a Vitacress ou a Haygrove que
"têm" escravos a plantar, a cuidar e a colher os seus frutos. Há uma
série de intermediários com os quais algumas empresas ou associações de
empresas, como a Associação dos Horticultores, Fruticultores e Floricultores
dos Concelhos de Odemira e Aljezur, estabelecem prestações de serviços e é aqui
que as águas se turvam. A responsabilidade não é só dos capatazes de
circunstância e dos oportunistas da miséria (no meio estão os habituais abutres
de pequena craveira, incluindo as empresas de trabalho temporário como a
Multitempo), mas também, e decisivamente, de quem montou o negócio.
No Alqueva, os mega-olivais e os mega-amendoais padecem
de problemas similares (a que acrescem, por exemplo, a destruição de
monumentos), com variações quando muda o tipo de colheita. A habitual incerteza
em relação às propriedades mantém-se (às tantas pertence tudo a fundos
imobiliários sedeados sabe-se lá onde), os intermediários mercadores de
escravos também lá estão e, no fim, as grandes empresas que parece que não têm
nada a ver com aquilo ficam com o dinheiro, claro.
Esta situação não é um “acidente”. Não é um “erro”, ou um
crime inesperado que apanhou toda a gente de surpresa. A lógica da produção
hiper-intensiva implica olhar para tudo como factores de produção sem
componente humana ou social e, desse ponto de vista, procurar reduzir o seu
custo. A inserção no capitalismo globalizado é também uma corrida para o
abismo, obrigando a concorrer para as piores condições de produção. Reduzir o
custo do trabalho (ou até eliminá-lo), reduzir os custos fiscais desse
trabalho, reduzir o custo da água (e a instalação e perímetros de rega públicos
é só isso), concentrar a produção para reduzir os custos das operações, se for
possível ter o menor custo possível (ou até nenhum) com cuidados ambientais,
melhor. Os sucessivos governos portugueses montaram o que está a acontecer. Não
montaram só os regadios e a desregulação ambiental, já que no caso de Odemira e
Aljezur estamos mesmo a falar de produção dentro de um Parque Natural. Os
governos também ajudaram a montar a escravatura. E, por omissão, ao focarem
toda a atenção em habitação, condições de salubridade e intermediários
mafiosos, ajudam a garantir a sua manutenção.
Este é o “desenvolvimento rural” preconizado por muitas
das sumidades da agricultura capitalista. Muitos dirão dizer que “alimentam o
país”, mas toda a gente sabe que o objectivo da maior parte destas colheitas é
a exportação. E mesmo se alguém alimentasse alguém, não seriam as grandes
empresas mas as dezenas de milhares de trabalhadores, muitos dos quais sem
sequer a segurança de estarem regularizados, que apanham azeitona de outubro a
fevereiro, os frutos vermelhos no Algarve e Odemira, o melão no Alentejo e
Ribatejo, a pera rocha no Oeste e fazem as vindimas em agosto e setembro. Na
Califórnia, trabalhadores migrantes rurais não documentados passaram a poder
andar tranquilamente na rua durante o Covid-19, porque os seus patrões lhes
deram documentos a declarar que apanhar as colheitas era trabalho essencial.
Ilegal e essencial. Temos um grande problema aqui. A agricultura, a agricultura
moderna e eficiente, pode ser uma realidade, mas o que se passa hoje nada tem
que ver com isso. Se é essencial, não pode estar exposta à volatilidade dos
mercados. Os custos com trabalho e ambiente não são opcionais.
O modelo de exploração de agricultura hiper-intensiva destrói
o meio rural, fragiliza o ambiente, baixa os salários de toda a gente e recorre
sem problemas à escravatura, para produzir maioritariamente colheitas para
exportação. Com a crise climática, o modelo de exploração hiper-intensiva
torna-se ainda mais evidentemente um crime contra o futuro. Ainda assim, vemos
a promoção de novos grandes perímetros de rega, como o Projeto Tejo, que
prometem continuar a cultivar os crimes que estamos a colher hoje. A
agricultura do futuro não pode ser isto.
Enquanto PJ, SEF e ACT andarem atrás de angariadores de
mão-de-obra e criminosos de meio-tostão, enquanto o governo se foca na
miserável habitação e insalubridade, não há solução. As empresas e os
empresários agrícolas que operam neste sistema são tão ou mais responsáveis
pelo que se está a passar do que os intermediários. Ao depender de
trabalhadores migrantes em regime de baixo custo, a escravatura faz parte do
modelo de produção agrícola hiper-intensivo em todo o mundo.»
João Camargo, Ilegais essenciais, da agricultura hiper-intensiva e da escravatura - Expresso 6mai2021.
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