domingo, 28 de fevereiro de 2021

Reflexão - «Será que devemos ouvir os conselhos do terceiro homem mais rico do mundo?»

«Os media em todo o mundo andam a incensar o recente livro de Bill Gates. Mas será que devemos ouvir os conselhos do terceiro homem mais rico do mundo? Bill Gates tem um património líquido estimado em 129 mil milhões de dólares. Os seus bens incalculáveis, hábitos altamente destrutivos e enormes investimentos do seu fundo de caridade opaco contradizem a sua mensagem de que ele é o homem que vai resolver a crise climática.

O facto é que quanto mais rico se for, maior será a pegada ecológica. Não há como escapar a isso. Entre os muitos investimentos de 22,34 mil milhões da Bill & Melinda Gates Foundation Trust, a maioria não está em empresas de baixo carbono: AutoNation (vendem carros velhos), Berkshire Hathaway (holding para uma infinidade de negócios), Coca-Cola FEMSA (conhecida por esgotar aquíferos e arruinar a saúde) e Deere & Co (fabricantes de motores diesel).

Gates garante ter desinvestido de empresas de combustíveis fósseis em 2019, mas a declaração de impostos da sua fundação daquele ano mostra milhões de dólares em investimentos diretos em empresas como a Exxon, a Chevron e a Japan Petroleum Exploration. Outros milhares de milhões são investidos em indústrias dependentes de combustíveis fósseis, como companhias aéreas, máquinas pesadas e automóveis. Ele é presidente da TerraPower, uma empresa de reatores nucleares que não colocou energia na rede elétrica.

É por isso que Tim Schwab rotula o livro de Gates de "um grande anúncio para os seus investimentos". Gates usa-o para pedir ao governo dos Estados Unidos para ser um co-investidor da TerraPower.

O que é surpreendente é a atitude acrítica dos media em relação às exuberâncias de Gates. O Financial Times de 20fev2021 dedicou a primeira página e meia do seu suplemento Life & Arts, ao seu “Manifesto Verde”, sem comentários ou críticas: pura publicidade. Quem mais receberia este tratamento? Algures no texto ele diz: “O problema é simples. Não podemos dar-nos ao luxo de emitir mais gases de efeito estufa.” É evidente que ele não se inclui neste "nós" porque, se o fizesse, teria que mudar completamente o seu comportamento e estilo de vida, algo que parece incapaz de fazer.

Tal como grande parte do setor industrial-empresarial, Gates imagina que a solução para a crise climática é tecnológica. Não pode ser apenas isso, é uma mudança de sistema, e comportamental.

Ser um dos principais filantropos nos EUA, ter doado milhares de milhões a instituições de caridade, dá a Gates uma plataforma poderosa para as suas opiniões. Ele aparece no palco mundial entre especialistas na área que foram eleitos democraticamente ou nomeados por serem especialistas.

A filantropia tornou-se a profissão de Gates, e a sua motivação é amenizar a sua culpa com o tamanho da sua riqueza e da sua pegada ecológica e exercer o poder. Não será por acaso que as suas doações de caridade e investimentos na busca de vacinas para o coronavírus tenham feito a sua fortuna pessoal aumentar $ 20 mil milhões de dólares. Isso não é filantropia, é especulação. Tim Schwab cita Anthony Rogers-Wright, diretor de justiça ambiental do New York Lawyers for the Public Interest: “O melhor que esses milionários poderiam fazer seria acabar com as sua fundações e pagar a sua parte justa dos impostos”. Ele sublinha que as novas receitas fiscais podem ajudar a financiar soluções concebidas democraticamente. “Se Gates realmente quer ser eficaz e quer elevar a equidade, ele deveria realmente ouvir as pessoas que estão a sofrer os impactos e ampliar as suas soluções, em vez de cair de pára-quedas e com ar de salvador, o que em alguns casos, causa mais danos do que benefícios.”

Christine Nobiss, fundadora da Great Plains Action Society dos povos indígenas, afirma que Bill Gates se tornou o maior proprietário de terras agrícolas nos Estados Unidos. Ele possui quase 100.000 hectares e não está a cultivá-los de forma regenerativa ou mesmo sustentável. “Ele está basicamente a participar no ciclo interminável de colonização”, diz Nobiss.

Num estudo de 2019 sobre os hábitos de voo e comportamentos sociais de celebridades, Gates aparece a liderar com mais emissões, ultrapassando Jennifer Lopez, Paris Hilton e Oprah Winfrey. Não admira que ele gostaria do combustível de aviação sustentável com que sonha no seu livro e uma maneira elegante de compensar toda a sua culpa pelo carbono.

Vejamos uma coisa: você confiaria no McDonald's para tornar o mundo vegano ou em Putin para trazer a paz mundial? Então, por quê ouvir Bill Gates, um homem com uma pegada de carbono do tamanho de um pequeno país?

Depois, há a questão da justiça climática. No seu livro, ele nunca questiona os sistemas políticos e modelos económicos que provocam os maiores impactos da crise climática nos pobres e pessoas de cor. A única maneira de ele escapar a estes conflitos de interesse seria deixá-lo liderar pelo exemplo. Ele que dê todo o seu dinheiro aos pobres, sem contrapartidas. Ele que viva num pequeno apartamento com 100 dólares por semana. Ele que veja o mundo do ponto de vista de um refugiado climático - e não diga nada sobre isso. Quando ele tiver feito tudo isso, segui-o.»

David Thorpe, The Fifth Estate

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