sábado, 19 de dezembro de 2020

Reflexão: «O embuste do hidrogénio»

Subitamente, o hidrohénio é-nos apresentado como uma arma para combater o aquecimento global. Os governos avançam com planos 'Net Zero'; as petrolíferas dizem que estão investindo nisso; dirigentes sindicais dizem que isso vai criar empregos.

Boris Johnson, o primeiro-ministro do Reino Unido, colocou o hidrogénio no centro do seu programa de dez pontos Net Zero PR. Disse que o governo investirá até £500 milhões em novas instalações de produção e teste do uso de hidrogénio para aquecer residências. Falou na construção de uma “cidade do hidrogénio” e sobre a geração de 5 GW de hidrogénio de baixo carbono até 2030. 

Mas ninguém fala sobre a indústria de hidrogénio que já existe, que todos os anos produz cerca de 70 milhões de toneladas de hidrogénio puro e outros 45 milhões de toneladas de hidrogénio em outros produtos químicos e lança 830 milhões de toneladas de CO2 na atmosfera. Sim, leu bem. 830 milhões de toneladas de CO2 por ano - ou 2% do total global de emissões de gases de efeito estufa. Equivale a cerca de quatro quintos das emissões da aviação; mais do dobro das emissões de toda a economia do Reino Unido. Desses 115 milhões de toneladas de hidrogénio produzidos, mais de 99% é 'hidrogênio cinza' - o que significa que é extraído do gás natural, carvão ou petróleo, e o dióxido de carbono que sobra acaba no ar.

Está na moda falar em 'hidrogénio azul', produzido a partir de combustíveis fósseis, mas com o carbono capturado e armazenado, ao invés de ser emitido, e até mesmo em 'hidrogénio verde', produzido por eletrólise da água, usando quantidades gigantescas de eletricidade. Mas essas técnicas são usadas apenas numa pequeno número de empresas. O hidrogénio cinza domina o mercado atual.

Empresas e governos prometem agora expandir a produção de hidrogénio azul e verde. Afirmam que substituirá o gás natural para aquecer as casas das pessoas e a gasolina para os carros, e que reduzirá as emissões de carbono. Mas antes de expandir a produção de hidrogênio, que tal descarbonizar a produção existente? Isso representaria um grande corte nas emissões de carbono a nível mundial. Significaria também um grande solovanco em algumas das indústrias mais poluentes do mundo - refinarias de petróleo e produção petroquímica - onde o hidrogénio é produzido e usado.

Fala-se pouco da enorme pegada de carbono do hidrogénio em relatórios vistosos, comunicados de imprensa e políticas Net Zero das empresas que o produzem. Mas um relatório publicado no ano passado pela Agência Internacional de Energia confirmou que um terço do uso mundial de hidrogénio - ou 38 milhões de toneladas por ano - é feito em refinarias de petróleo. A maior parte é produzida no local, principalmente a partir do gás natural.

O hidrogénio é usado em processos químicos que removem enxofre e outras impurezas do petróleo bruto. O hidrogénio usado nas refinarias produz cerca de 230 milhões de toneladas por ano de emissões de CO2.27% do hidrogénio, incluindo uma boa parte de hidrogéio incorporado em outros produtos químicos, vai para a produção de ammonia, que, por sua vez, é usada principalmente para fazer fertilizantes químicos, indo uma quantidade menor para explosivos, fibras sintéticas e outros produtos químicos. O segundo maior uso do hidrogénio, 11% do total, é a produção de metanol, um tipo de álcool usado na fabricação de solventes, combustíveis e anticongelantes. Cerca de 3% do hidrogénio mundial é usado no processo de redução direta do ferro para fazer aço. O hidrogénio é usado em outros processos químicos e para fornecer calor de alta temperatura à indústria.

Perante este grande impulso de governos e empresas reivindicando o hidrogénio como um combustível de baixo carbono, são necessárias informações de melhor qualidade. Onde está a evidência de que essa onda de investimentos com hidrogénio seria mais eficaz do que soluções do lado da procura - como isolar as casas para que não precisem de muito calor e fornecer o calor necessário com bombas elétricas, como propõem sindicalistas em Leeds? A menos que essas perguntas sejam feitas, podemos ter a certeza de que o hidrogénio está sendo usado não para cortar as emissões de carbono no ritmo necessário, mas para apoiar as empresas poderosas que o usam e fazê-las parecer mais verdes do que são.

Qualquer abordagem política que queira o bem da sociedade deveria colocar, no mínimo, estas questões: 

  • Onde está a contabilidade claramente separada - contabilidade de recursos, não contabilidade de dinheiro - dos combustíveis fósseis usados ​​para produzir hidrogénio, as emissões de CO2 do processo e as emissões de produtos nos quais o hidrogénio está incorporado (como fertilizantes)? 
  • Quais são as avaliações do ciclo de vida dos processos que envolvem a produção e uso de hidrogénio, incluindo as suas pegadas de carbono? 
  • O que está sendo feito ou não para adaptar a produção atual de hidrogénio com captura e armazenamento de carbono? Se não está sendo feito, por que não? 
  • O que dizem os engenheiros sobre o potencial de substituição do hidrogénio em processos industriais por alternativas de carbono zero? 
  • Visto que o hidrogénio está tão profundamente inserido na indústria do petróleo, como será afetado pelo declínio na produção de petróleo que as empresas prometem? O hidrogénio agora usado para a produção de petróleo estará disponível para outros usos?

Gabriel Levy, The Ecologist.

 

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