quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Bico calado

  • «(…) Em Portugal, quem ficou em casa em teletrabalho recebe mais 56% de salário do que a média, o que denota que se trata de profissões qualificadas. Para muitas destas pessoas, este regime é apetecível, sugere uma nova liberdade na gestão do tempo e cria a ilusão da autonomia funcional. Vão querer torná-lo permanente. Só que, na maior parte dos casos, isso vai condená-las a perdas irrecuperáveis. A primeira consequência é que o trabalho perde qualidade: uma teleconsulta em medicina ou uma aula virtual podem responder a uma emergência, mas não podem ser o sistema de cuidados ou de educação. A segunda consequência será que a hierarquia perderá a contenção imposta pelo horário. Sobretudo para as mulheres, o efeito vai ser afogar a sua vida privada nas obrigações da empresa. A terceira, a pior, é que haverá quem descubra a mina de ouro, reconverter os seus assalariados em empresários em nome individual que trabalham remotamente a recibo verde. O efeito para a empresa será perder o conhecimento tácito, mas haverá quem festeje o que poderia vir a ser uma feroz revolução conservadora na segurança social: a estes trabalhadores a empresa passará a fazer descontos irrisórios.» Francisco Louçã.
  • «(…) O grande boom de moradias suburbanas que se seguiu à Segunda Guerra Mundial foi possibilitado por enormes subsídios federais, por meio de programas - especialmente da Federal Housing Administration e da Veterans Administration - que protegiam os credores do risco garantindo hipotecas de casas certificadas. Em 1950, o F.H.A. e o V.A. garantiam metade de todas as hipotecas em todo o país. Esses subsídios não ajudaram apenas os compradores de casas. Foram também uma mina de ouro para os construtores, entre eles um certo Fred Trump, que mais tarde foi processado por discriminar inquilinos negros e cujo filho ocupa atualmente a Casa Branca. Mas esses subsídios só estavam disponíveis para brancos. Como relata Richard Rothstein no seu livro “The Color of Law”. As diretrizes do F.H.A. alertavam especificamente contra empréstimos em comunidades nas quais as crianças podiam partilhar salas de aula com outras crianças que "representam um nível muito inferior da sociedade ou um elemento racial incompatível". De facto, o F.H.A. foi muito além de favorecer zonas brancas; o programa criou-as. Após a guerra, quando construtores como William Levitt começaram a construir novas comunidades sobre terrenos agrícolas, eles viram os seus planos ser aprovados pelo F.H.A., garantindo assim que os compradores tivessem acesso automático a hipotecas subsidiadas. E uma das coisas que o F.H.A. exigia de tais planos era a estrita segregação racial, supostamente para garantir os valores das propriedades. Neste momento, tudo isso pode soar a história antiga. Mas o racismo puro e duro da política habitacional do pós-guerra lançou uma grande sombra sobre a nossa sociedade. Durante os 20 ou mais anos que se seguiram, a Segunda Guerra Mundial representou uma oportunidade única para a classe média solidificar a sua posição - uma oportunidade que foi negada aos negros. (…) Depois, essa janela de oportunidade fechou-se. Os salários, ajustados pela inflação, estagnaram. Os preços das moradias dispararam, em parte porque as restrições de construção em muitos subúrbios proibiam unidades multifamiliares. E as famílias negras, que eram excluídas de um mercado em ascensão numa época em que muitos outros americanos partilhavam os frutos de um boom imobiliário, acharam as barreiras financeiras à aquisição de uma casa aterradoras. (...) A liberdade de escolha e o mercado livre não tornaram a América uma sociedade segregada e desigual. A discriminação foi uma política estatal, envolvendo o exercício do poder político para negar às pessoas a liberdade de escolha. (…)» Paul Krugman, NYTimes.

  • «”As unidades de infantaria, os aviões PV-2 e T-6 e suas bombas de napalm, vindos especialmente das bases da NATO em Portugal (Ota e Montijo), recebem ordens precisas: atirar à vista sobre qualquer grevista na Baixa do Cassange. Chegávamos sobre as aldeias que estão alinhadas umas atrás das outras ao longo da estrada. Estavam lá, sentados, em fardos, imóveis à vista do avião. Só um sádico poderia ter atirado sobre estas pessoas que não queriam senão dinheiro para comer. Então largávamos bombas nos sítios desertos e voltávamos a Luanda com um peso na consciência, porque não tínhamos tido coragem de voltar com elas. Mas depois vieram outros, que não tiveram escrúpulos e que cumpriram a tarefa. Mais tarde outros PV-2, outros TMJ, ainda com napalm, vieram como reforço das bases da NATO do Montijo e Ota, e as suas asas resplandecendo com a Cruz de Cristo, insígnia da aviação militar portuguesa. Dezassete aldeias ficaram destruídas e cinco mil homens, mulheres e crianças queimados na Baixa do Cassange.”
  • (José Ervedosa, Africasia nº 9)». Ana Barradas, Ministros da noite – Antígona 1995

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