«A reciclagem faz parte de um enganador truque de ilusionismo que reformulou o nosso problema de resíduos não como um excesso empresarial, mas de escolhas irresponsáveis dos consumidores e estilos de vida individuais.
No início deste mês, o New York Times publicou um vídeo desmontando corretamente A Grande Treta da Reciclagem ( “The Great Recycling Con”no original). Segundo o Times, o setor de plásticos vendeu a várias gerações de consumidores uma mentira sobre quanto do lixo produzido poderia ser reciclado. para criar a falsa possibilidade de consumo ecológico e sem culpa.
Chega dolorosamente perto, mas perde toda a história. O verdadeiro “grande golpe da reciclagem” é muito mais profundo do que as mentiras sobre que produtos podem e não podem ser reciclados; trata-se de uma batalha política travada pelas empresas geradoras de resíduos contra o público para fugir à regulamentação, transferir a responsabilidade pela destruição ambiental para os consumidores e proteger o modelo de negócios ecocida e altamente lucrativo que está no coração do capitalismo industrial.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos procuraram deixar para trás a austeridade da guerra e abraçaram com entusiasmo o consumo em massa. Duplicámos as refeições pré-preparas, refrigerantes engarrafados, carros novos e muitas outras coisas.
Era uma marca que separava a América das prateleiras vazias e cinzentas que assocávamos à União Soviética. O consumo em massa foi escolha, foi liberdade.
Em 1959, Richard Nixon voou para Moscou para exibir pessoalmente as possibilidades do consumismo americano a Nikita Khrushchev, no famigerado Kitchen Debate.
À medida que o consumo de produtos se tornava cada vez mais vinculado ao sonho americano, a indústria aproveitava a ética do excesso para vender cada vez mais coisas para obter cada vez mais lucro. Vance Packard, jornalista profético e sociólogo, criticou a publicidade como uma indústria e uma estratégia liderada por "persuasores" que exploravam as vulnerabilidades dos consumidores para vender cada vez mais o seu produto, prometendo status e satisfação social.
Em 1960, Packard publicou The Waste Makers, chamando a atenção para uma série de práticas de produção de resíduos pelas empresas, nomeadamente para o conceito de obsolescência planeada. Segundo Packard, os fabricantes intencionalmente "projetam taxas de mortalidade em produtos", criando uma bomba-relógio cada vez mais curta, para que os consumidores não tenham escolha a não ser comprar mais e comprar novamente.
Os lucros corporativos dispararam e uma nova indústria de produtos descartáveis, construída com base no próprio conceito de desperdício, mudou radicalmente a vida americana e a economia corporativa. (…)
Na década de 1960, o movimento de contracultura desafiou várias normas sociais predominantes, incluindo os símbolos ligados ao consumismo.
Mas já em 1953, como relata Heather Rogers em Gone Tomorrow: The Hidden Life of Garbage, quase vinte anos antes do primeiro Dia da Terra, os agricultores de Vermont verificaram que as suas vacas se engasgavam e morriam com garrafas de cerveja de vidro que tinham sido despejadas nos seus campos. Por isso, protestaram e fizeram aprovara uma lei estadual que proibia não apenas o ato de descartar garrafas, como também a venda dessas garrafas descartáveis.
Talvez antecipando regulamentações semelhantes em todo o país e temendo uma coligação trabalhista-ambientalista desafiando as suas práticas de produção e venda de produtos que rapidamente se transformam em desperdício, as grandes empresas ameaçadas responderam com uma série de campanhas de greenwashing para boicotar a ação dos ambaientalistas.
Entre elas, a American Can Company e a Owens-Illinois Glass Company recrutaram várias empresas especializadas em produtos descartáveis, incluindo a Coca-Cola, a Richfield Oil Corporation e a Dixie Cup Company, para formar a Keep America Beautiful, uma entidade pseudo-ambientalista, sem fins lucrativos, que defendia a responsabilidade ambiental como uma virtude cívica.
Baseando-se em noções de “boa cidadania” e inventando o conceito de lixo como um pecado literal contra a natureza, o grupo usou símbolos da virtude burguesa branca, como a famosa Susan Spotless,
e inspirou-se no estereótipo do índio nobre, derramando uma única lágrima pelo que está implícito ser uma continuação do genocídio indígena liderada pelo consumidor, para transferir a responsabilidade da gestão dos resíduos das empresas para os consumidores. "A poluição começa nas pessoas ", dizia a Keep America Beautiful, aos americanos: "as pessoas podem parar com isso".
E as campanhas de propaganda do grupo funcionaram. Seis anos após a sua primeira grande parceria publicitária com o Ad Council, a percentagem de refrigerantes vendidos em embalagens descartáveis quadruplicou, de 3% para 12%. Dez anos depois, era quase 70%.
Em vez de as empresas reduzirem a sua própria produção de materiais descartáveis e reduzirem os seus lucros, os consumidores americanos agora envergonhavam-se entre si para gerir os resíduos baratos da indústria. Foi um truque sujo de malabarismo que transformou o crescente problema de resíduos da América não num excesso corporativo, mas numa questão de escolhas e de estilos de vida irresponsáveis dos consumidores.
Dezasseis anos depois, depois de derrotar uma renovação da lei de Vermont em 1957 e aprovar leis anti-lixo em todo o país, a Keep America Beautiful criou grupos satélite para defender uma nova forma de gesta individualizado de resíduos em massa: a reciclagem. Uma alternativa a "reduzir" ou "reutilizar", os gigantes da indústria rapidamente adotaram a prática, o que permitiu que os consumidores continuassem a comprar, agora sem sentimento de culpa, e as empresas continuassem a fugir ao escrutínio dos reguladores ou às acusações dos ambientalistas. O grupo investiu dinheiro corporativo na pesquisa e desenvolvimento de reciclagem, abrindo instalações em todo o país para apresentar aos municípios e consumidores americanos a nova forma de gestão de resíduos amiga das empresas.
O Keep America Beautiful ainda existe e, com outras organizações anti-lixo e pró-reciclagem, subsidiadas pela indústria, continua a desviar a atenção do público das regulamentações corporativas para a prática da reciclagem individual. Segundo uma reportagem da Intercept, o braço filantrópico da Coca-Cola deu em 2017 mais de 600.000 dólares, considerado um presente dedutível de impostos, para um desses grupos, a Recycling Partnership.
O grupo não só supera a popularidade da reciclagem, mas, segundo um especialista , continua a vender em excesso os benefícios e possibilidades ecológicos da própria reciclagem.
A tragédia do Grande Truque da Reciclagem não é apenas o facto de as empresas terem-se safado de assassinatos planetários e terem transferido os custos de limpeza da sua mixórdia para os consumidores. (…)
A reciclagem individual não é suficiente para salvar o planeta. Até os recicladores mais diligentes e de espírito cívico, os modernos Susan Spotlesses, enfrentam obstáculos estruturais para minimizar a pegada de resíduos. E mesmo se todos nós fôssemos Susan Spotlesses e os sistemas de reciclagem funcionassem perfeitamente, os meios de produção do capitalismo industrial americano continuarão produzindo uma quantiddade interminável de resíduos no processo de produção. Não há escolha senão enfrentar os produtores de lixo. (…)»
Joshua Manson, in Against Recycling – Jacobin.
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