Newsletter: Receba notificações por email de novos textos publicados:

domingo, 26 de outubro de 2025

RAQUEL VARELA, O CANTO DO MELRO – A VIDA DO PADRE JOSÉ MARTINS JÚNIOR (12)

D. Francisco Antunes Santana, 30º bispo do Funchal. Óleo de Richard Gonçalves, 2005 (c.).

"Martins tinha consigo o documento do Padre Ribeiro, pároco de Machico, declarando que seria ele o padrinho do jovem crismando. Entrou na ampla sacristia munido das alfaias litúrgicas para a concelebração, como fizera com o mesmo bispo, dois anos antes, quando exercia as funções de presidente da Comissão Administrativa de Machico.

— Padre Martins, não admito que concelebres comigo — atirou-lhe logo Santana.

— Sr. Bispo, acho estranho, há dois anos não foi assim. Mas bem... Quero dizer-lhe que vou ser padrinho de um rapaz. Aqui tem o boletim de admissão assinado pelo pároco Padre Ribeiro — e mostrou-lhe o boletim.

— Não te admito! — gritando.

— Já que não posso concelebrar consigo nem posso ser padrinho, vou para dentro da igreja à espera da missa, como um simples cristão, anónimo — respondeu-lhe, em tom plácido, mas revoltado por dentro.

— Não, não! Eu não te admito que estejas nesta igreja! Dou-te cinco minutos para abandonares aqui a sacristia e a igreja — respondeu-lhe Santana.

— O senhor está a abusar do poder que não tem.

— Enquanto não saíres, Martins, não começo a cerimónia.

— Não saio desta igreja. Só aos pontapés ou aos pedaços — respondeu-lhe, categórico, Martins. (…)

Foi então que o Bispo Santana perdeu a cabeça. De repente atirou-se a Martins, puxando-lhe a gola, quase a sufocá-lo. Tal como, anos antes, o Reis Rodrigues em África. Santana tinha força — tinha um ar de gorila, chefe de milícias. Orgulhava-se de dizer aos padres: «há duas coisas de que não morro, de medo nem de parto».

Martins aguentou-se, intrépido, sem se mexer. Se alguém se mijaria pelas pernas abaixo, não seria ele.

Até que, naquele mesmo instante, entrou na sacristia o repórter fotográfico Manuel Nicolau, do Diário de Notícias, e zás!, tirou uma fotografia. O Bispo assustou-se com o flash e largou com presteza os colarinhos de Martins, para logo se atirar, de rompante, ao Manuel Nicolau, puxando-lhe a máquina.

— Sr. Bispo! — gritou Manuel, agarrado ao estojo da máquina.

— Não me pode tirar a máquina, é o meu ganha-pão!

Santana puxou com mais força e conseguiu ficar com a máquina na mão, o fotógrafo com o estojo.

— Eu vou-lhe dar a máquina, depois de tirar o rolo — disse então o bispo, com uma cara gélida, ao Manuel Nicolau.

Abriu, plácido, a máquina, tirou o rolo. Nesse mesmo instante entrou na sacristia a polícia de Machico, a quem Santana entregou o rolo.

O Padre Martins saiu, a passo calmo, e regressou da sacristia para dentro da nave da igreja.

O bispo, pouco depois, também entrou na igreja, ajoelhou-se e pôs a cabeça entre as mãos, à espera de que Martins saísse. Nesse instante, o povo começou a gritar blasfémias, palavrões nem escutados por Martins na caserna no meio do mato em África. A igreja ia-se esvaziando. Lá dentro ouvia-se o povo: «O padre não sai, a igreja é do povo!» (…)

Entretanto, Martins ficou na igreja. Santana também. Quase sós. Alguém foi, pouco depois, dizer-lhes que estava a chegar o exército.

«Já que cheguei até aqui», ponderou Martins, «vou até ao fim, tantas horas nisto, quero ver o fim disto». Martins viu o templo quase vazio, portanto, sem justificação legal para a entrada da polícia de choque.

E dirigiu-se à polícia de choque, à porta da igreja.

O Bispo Santana levantou-se. E passou por Martins. Martins fez-lhe uma vénia; Santana nem queria acreditar. E saiu, protegido pela polícia de choque, que ele mesmo tinha mandado chamar. E que o acompanhou até ao carro, onde seguiu para o Palácio Episcopal.

No dia seguinte apareceu publicado pela diocese no Jornal da Madeira, dirigido por Alberto João, o decreto de suspensão a divinis do Padre José Martins Júnior, segundo o qual ele ficou impedido de exercer o ministério sacerdotal, as coisas divinas, e, portanto, não podia realizar casamentos, batizados e funerais.

Santana, logo a seguir, convocou a Congregação das Religiosas da Caldeira em Câmara de Lobos — que fabricavam as hóstias para todas as paróquias da ilha — e proibiu-lhes o fornecimento à Ribeira Seca. Isso deixava os cristãos da paróquia sem hipótese de celebrar a Eucaristia e receber a Comunhão. Conceição de Góis, revoltada com esta diabólica agressão à fé e à população, deu logo a ideia:

— Compra-se uma máquina de fazer hóstias.

E assim aconteceu. Durante quarenta e cinco anos.”

Raquel Varela, O canto do melro – A vida do Padre José Martins Júnior – Bertrand 2024, pp 168-171.

Sem comentários: