Chris Hedges, Substack. Trad. O’Lima.
Não faltam planos de paz fracassados na Palestina ocupada, todos eles incorporando fases e cronogramas detalhados, desde a presidência de Jimmy Carter. Eles terminam da mesma maneira. Israel consegue o que quer inicialmente — no caso mais recente, a libertação dos reféns israelitas restantes — enquanto ignora e viola todas as outras fases até retomar os seus ataques ao povo palestino.
É um jogo sádico. Um carrossel da morte. Tal como os anteriores, este cessar-fogo é um intervalo comercial. Um momento em que o condenado pode fumar um cigarro antes de ser abatido com uma saraivada de balas.
Assim que os reféns israelitas forem libertados, o genocídio continuará. Não sei quando isso acontecerá. Esperemos que o massacre em massa seja adiado por pelo menos algumas semanas. Mas uma pausa no genocídio é o melhor que podemos esperar. Israel está prestes a esvaziar Gaza, que foi praticamente destruída após dois anos de bombardeamentos implacáveis. Não há como impedir isso. Este é o culminar do sonho sionista. Os EUA, que concederam a Israel uma impressionante ajuda militar de 22 mil milhões de dólares desde 7 de outubro de 2023, não vão fechar o seu canal, a única ferramenta que poderia impedir o genocídio.
Como faz sempre, Israel culpará o Hamas e os palestinianos por não cumprirem o acordo, muito provavelmente por se recusarem — quer seja verdade ou não — a desarmar, como exige a proposta. Washington, condenando a suposta violação do Hamas, dará a Israel luz verde para continuar o seu genocídio, a fim de criar a fantasia de Trump de uma Riviera de Gaza e uma «zona económica especial» com a relocalização «voluntária» dos palestinianos em troca de vales digitais.

Palestinianos, carregando os pertences que conseguiram levar consigo, dirigem-se para a parte norte da Faixa de Gaza pela Rua Rashid, que liga o norte e o sul do enclave, após o anúncio do cessar-fogo na cidade de Gaza, Gaza, em 10 de outubro de 2025. (Foto de Stringer/Anadolu via Getty Images)
Das inúmeras propostas de paz apresentadas ao longo das décadas, a atual é a menos séria. Além da exigência de que o Hamas liberte os reféns dentro de 72 horas após o início do cessar-fogo, ela carece de detalhes e prazos específicos. Está repleta de ressalvas que permitem a Israel revogar o acordo. E esse é o ponto principal. Ela não foi concebida para ser um caminho viável para a paz, o que a maioria dos líderes israelitas compreende. O jornal de maior circulação de Israel, Israel Hayom, fundado pelo falecido magnata dos casinos Sheldon Adelson para servir de porta-voz do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e defender o sionismo messiânico, instruiu os seus leitores a não se preocuparem com o plano de Trump, pois trata-se apenas de «retórica».
Israel, num exemplo da proposta, «não retornará às áreas das quais se retirou, desde que o Hamas implemente integralmente o acordo». Quem decide se o Hamas «implementou totalmente» o acordo? Israel. Alguém acredita na boa-fé de Israel? Israel pode ser considerado um árbitro objetivo do acordo? Se o Hamas — demonizado como um grupo terrorista — se opuser, alguém o ouvirá?
Como é possível que uma proposta de paz ignore o Parecer Consultivo do Tribunal Internacional de Justiça de julho de 2024, que reiterou que a ocupação de Israel é ilegal e deve terminar? Como é possível que não mencione o direito dos palestinianos à autodeterminação? Por que se espera que os palestinianos, que têm o direito, segundo o direito internacional, de lutar armadamente contra uma potência ocupante, deponham as armas, enquanto Israel, a força ocupante ilegal, não o faz?
Com que autoridade os EUA podem estabelecer um «governo de transição temporário» — o chamado «Conselho da Paz» de Trump e Tony Blair — marginalizando o direito palestino à autodeterminação? Quem deu aos EUA a autoridade para enviar a Gaza uma «Força Internacional de Estabilização», um termo educado para ocupação estrangeira?
Como podeme os palestinianos aceitar uma «barreira de segurança» israelita nas fronteiras de Gaza, confirmando que a ocupação continuará? Como é que qualquer proposta pode ignorar o genocídio lento e a anexação da Cisjordânia? Por que é que Israel, que destruiu Gaza, não é obrigado a pagar indemnizações?
O que devm os palestinianos pensar da exigência contida na proposta de uma população de Gaza «desradicalizada»? Como se espera que isso seja alcançado? Campos de reeducação? Censura generalizada? Reescrita do currículo escolar? Prisão de imãs ofensivos nas mesquitas?
E quanto à retórica incendiária rotineiramente empregada pelos líderes israelitas, que descrevem os palestinianos como «animais humanos» e os seus filhos como «pequenas cobras»?
«Toda a Faixa de Gaza e todas as crianças de Gaza deveriam morrer à fome», anunciou o rabino israelita Ronen Shaulov. «Não tenho piedade por aqueles que, dentro de alguns anos, crescerão e não terão piedade por nós. Só uma quinta coluna estúpida, que odeia Israel, tem piedade por futuros terroristas, mesmo que hoje eles ainda sejam jovens e famintos. Espero que morram de fome, e se alguém tiver algum problema com o que eu disse, é problema deles.»
As violações israelitas dos acordos de paz têm precedentes históricos. Os Acordos de Camp David, assinados em 1978 pelo presidente egípcio Anwar Sadat e pelo primeiro-ministro israelita Menachem Begin — sem a participação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) — levaram ao Tratado de Paz Egito-Israel de 1979, que normalizou as relações diplomáticas entre Israel e o Egito. As fases subsequentes dos Acordos de Camp David, que incluíam uma promessa de Israel de resolver a questão palestiniana juntamente com a Jordânia e o Egito, permitir a autogovernança palestiniana na Cisjordânia e em Gaza dentro de cinco anos e acabar com a construção de colónias israelitas na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, nunca foram implementadas.
Os Acordos de Oslo de 1993, assinados em 1993, viram a OLP reconhecer o direito de Israel existir e Israel reconhecer a OLP como representante legítimo do povo palestino. No entanto, o que se seguiu foi a perda de poder da OLP e a sua transformação numa força policial colonial. O Acordo de Oslo II, assinado em 1995, detalhava o processo para a paz e a criação de um Estado palestino. Mas também ele foi abortad. Estipulava que qualquer discussão sobre os «colonatos» judeus ilegais deveria ser adiada até às negociações sobre o estatuto «final». Até então, a retirada militar israelita da Cisjordânia ocupada deveria estar concluída. A autoridade governamental estava prestes a ser transferida de Israel para a Autoridade Palestiniana, supostamente temporária. Em vez disso, a Cisjordânia foi dividida nas Áreas A, B e C. A Autoridade Palestiniana tinha autoridade limitada nas Áreas A e B, enquanto Israel controlava toda a Área C, mais de 60% da Cisjordânia.
O direito dos refugiados palestinianos de regressarem às terras históricas que os colonos judeus lhes confiscaram em 1948, quando Israel foi criado — um direito consagrado no direito internacional — foi abdicado pelo líder da OLP, Yasser Arafat. Isso alienou instantaneamente muitos palestinianos, especialmente aqueles em Gaza, onde 75% são refugiados ou descendentes de refugiados. Como consequência, muitos palestinianos abandonaram a OLP em favor do Hamas. Edward Said considerou os Acordos de Oslo “um instrumento de rendição palestina, uma Versalhes palestina” e criticou Arafat como “o Pétain dos palestinos”.
As retiradas militares israelitas previstas no acordo de Oslo nunca ocorreram. Havia cerca de 250 000 colonos judeus na Cisjordânia quando o acordo de Oslo foi assinado. Hoje, o seu número aumentou para pelo menos 700 000.
O jornalista Robert Fisk considerou Oslo «uma farsa, uma mentira, um truque para envolver Arafat e a OLP no abandono de tudo o que eles haviam buscado e lutado durante mais de um quarto de século, um método de criar falsas esperanças a fim de enfraquecer a aspiração de um Estado».
Israel rompeu unilateralmente o último cessar-fogo de dois meses em 18 de março de 2025, quando lançou ataques aéreos surpresa sobre Gaza. O gabinete de Netanyahu alegou que a retomada da campanha militar foi uma resposta à recusa do Hamas em libertar reféns, à sua rejeição das propostas de prorrogação do cessar-fogo e aos seus esforços para se rearmar. Israel matou mais de 400 pessoas no ataque inicial durante a noite e feriu mais de 500, massacrando e ferindo pessoas enquanto dormiam. O ataque inviabilizou a segunda fase do acordo, que teria levado o Hamas a libertar os restantes reféns masculinos, tanto civis como soldados, em troca de prisioneiros palestinianos e do estabelecimento de um cessar-fogo permanente, juntamente com o eventual levantamento do bloqueio israelita a Gaza.
Há décadas que Israel realiza ataques mortíferos contra Gaza, cinicamente chamando o bombardeamento de «cortar a relva». Nunca nenhum acordo de paz ou cessar-fogo impediu isso. Este não será exceção.
Esta saga sangrenta não acabou. Os objetivos de Israel permanecem inalterados: a expropriação e o extermínio dos palestinianos de suas terras. A única paz que Israel pretende oferecer aos palestinianos é a paz da sepultura.

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