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quarta-feira, 24 de setembro de 2025

LEITURAS MARGINAIS

A MORTE DA INDÚSTRIA DO HOLOCAUSTO
Chris Hedges, Substack. Trad. OLima.


Cartoon: Mr Fish.

Quase todos os estudiosos do Holocausto, que vêem em qualquer crítica a Israel uma traição ao Holocausto, recusaram-se a condenar o genocídio em Gaza. Nenhuma das instituições dedicadas à investigação e à comemoração do Holocausto traçou os paralelos históricos óbvios ou condenou o massacre em massa de palestinianos.

Os estudiosos do Holocausto, com poucas exceções, expuseram o seu verdadeiro objetivo, que não é examinar o lado sombrio da natureza humana, a propensão assustadora que todos temos de cometer o mal, mas santificar os judeus como vítimas eternas e absolver o Estado etnonacionalista de Israel dos crimes do colonialismo, do apartheid e do genocídio.

O sequestro do Holocausto, a falha em defender as vítimas palestinianas por serem palestinianas, implodiu a autoridade moral dos estudos sobre o Holocausto e dos memoriais do Holocausto. Eles foram expostos como veículos não para prevenir o genocídio, mas para perpetrá-lo, não para explorar o passado, mas para manipular o presente.

Qualquer reconhecimento tímido de que o Holocausto pode não ser propriedade exclusiva de Israel e dos seus apoiantes sionistas é rapidamente silenciado. O Museu do Holocausto de Los Angeles apagou uma publicação no Instagram que dizia: «NUNCA MAIS» NÃO PODE SIGNIFICAR APENAS NUNCA MAIS PARA OS JUDEUS», após uma reação negativa. Nas mãos dos sionistas, «nunca mais» significa precisamente isso, nunca mais apenas para os judeus.

Aimé Césaire, em «Discurso sobre o Colonialismo», escreve que Hitler parecia excecionalmente cruel apenas porque presidiu à «humilhação do homem branco», aplicando à Europa os «procedimentos colonialistas que até então tinham sido reservados exclusivamente aos árabes da Argélia, aos coolies da Índia e aos nègres d’Afrique».

Foi essa distorção do Holocausto como algo único que incomodou Primo Levi, que esteve preso em Auschwitz de 1944 a 1945 e escreveu “Sobreviver em Auschwitz”. Ele era um crítico feroz do Estado de apartheid de Israel e do seu tratamento aos palestinianos. Ele via o Shoah como «uma fonte inesgotável de maldade» que «se perpetua como ódio nos sobreviventes e brota de mil maneiras, contra a vontade de todos, como sede de vingança, como colapso moral, como negação, como cansaço, como resignação».

Ele lamentava o «maniqueísmo», aqueles que «evitam nuances e complexidade» e que «reduzem o rio dos acontecimentos humanos a conflitos, e os conflitos a dualidades, nós e eles». Ele alertou que a «rede de relações humanas dentro dos campos de concentração não era simples: não podia ser reduzida a dois blocos, vítimas e perseguidores». O inimigo, ele sabia, «estava fora, mas também dentro».

Levi escreve sobre Mordechai Chaim Rumkowski, um colaborador judeu que governou o gueto de Lodz. Rumkowski, conhecido como «Rei Chaim», transformou o gueto num campo de trabalho escravo que enriqueceu os nazis e a si próprio. Ele deportou os opositores para campos de extermínio. Ele violou e molestou meninas e mulheres. Ele exigia obediência incondicional e personificava a maldade dos seus opressores. Para Levi, ele era um exemplo do que muitos de nós, em circunstâncias semelhantes, somos capazes de nos tornar.

«Todos nós nos refletimos em Rumkowski, a sua ambiguidade é a nossa, é a nossa segunda natureza, nós, híbridos moldados a partir do barro e do espírito», escreveu Levi em «Os afogados e os salvos». «A sua febre é a nossa, a febre da nossa civilização ocidental que “desce ao inferno com trombetas e tambores”, e os seus adornos miseráveis são a imagem distorcida dos nossos símbolos de prestígio social.»

«Tal como Rumkowski, também nós estamos tão deslumbrados pelo poder e pelo prestígio que nos esquecemos da nossa fragilidade essencial», acrescenta Levi. «Quer queiramos quer não, acabamos por aceitar o poder, esquecendo-nos de que estamos todos no gueto, que o gueto está cercado por muros, que fora do gueto reinam os senhores da morte e que, ali perto, o comboio está à espera.»

Estas lições amargas do Holocausto, que alertam que a linha entre vítima e agressor é muito ténue, que todos nós podemo-nos tornar carrascos voluntários, que não há nada de intrinsecamente moral em ser judeu ou sobrevivente do Holocausto, são o que os sionistas procuram negar. Levi, por esta razão, era persona non grata em Israel.

Os estudos sobre o Holocausto, que explodiram na década de 1970 e foram sintetizados pela deificação do sobrevivente do Holocausto e fervoroso sionista Elie Wiesel — o crítico literário Alfred Kazin chamou-o de «Jesus do Holocausto» —, agora renunciaram a qualquer pretensão de defender verdades universais. Esses estudiosos do Holocausto usam um mal de referência, como aponta Norman Finkelstein, «não como uma bússola moral, mas sim como um bastão ideológico». O mantra «Não compare», escreve Finkelstein, «é o mantra dos chantagistas morais».

Os sionistas encontram no Holocausto e no Estado judeu um sentido e um propósito, bem como uma superioridade moral enjoativa. Após a guerra de 1967, quando Israel tomou Gaza e a Cisjordânia, Israel, como observou Nathan Glazer com aprovação, tornou-se «a religião dos judeus americanos».

Os estudos sobre o Holocausto baseiam-se na falácia de que um sofrimento único confere direitos únicos. Esse sempre foi o objetivo do que Finkelstein chama de “A Indústria do Holocausto”.

«O sofrimento judaico é retratado como indescritível, incomunicável e, ainda assim, sempre a ser proclamado», escreve o historiador europeu Charles Maier em «The Unmasterable Past: History, Holocaust, and German National Identity» (O passado incontrolável: história, holocausto e identidade nacional alemã). «É intensamente privado, não deve ser diluído, mas simultaneamente público, para que a sociedade gentia confirme os crimes. Um sofrimento muito peculiar deve ser consagrado em locais públicos: museus do Holocausto, jardins da memória, locais de deportação, dedicados não como memoriais judaicos, mas cívicos. Mas qual é o papel de um museu num país como os EUA, longe do local do Holocausto? ... Em que circunstâncias uma dor privada pode servir simultaneamente como luto público? E se o genocídio é certificado como um luto público, então não devemos aceitar também as credenciais de outras dores particulares? Os arménios e cambojanos também têm direito a museus do holocausto financiados com fundos públicos? E precisamos de memoriais para os adventistas do sétimo dia e os homossexuais pela sua perseguição às mãos do Terceiro Reich?»

Qualquer crime que Israel cometa em nome da sua sobrevivência — o seu «direito de existir» — é justificado em nome dessa singularidade. Não há limites. O mundo é preto e branco, uma batalha interminável contra o nazismo, que é proteiforme, dependendo de quem Israel tem como alvo. Desafiar essa sede de sangue é ser anti-semita, facilitando outro genocídio de judeus.

Esta fórmula simplista não só serve os interesses de Israel, mas também os interesses das potências coloniais que cometeram os seus próprios genocídios, os quais procuram ocultar. O que foi o extermínio dos nativos americanos pelos colonos europeus, dos arménios pelos turcos, dos indianos na fome de Bengala pelos britânicos ou a fome orquestrada pelos soviéticos na Ucrânia? O que foi o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki? O Manifest Destiny é diferente da adoção do conceito de Lebensraum pelos nazis? Também estes foram holocaustos, alimentados pela mesma desumanização e sede de sangue.

A sacralização do Holocausto nazi oferece uma troca bizarra. Armar e financiar o Estado de Israel, impedir que resoluções e sanções da ONU sejam adotadas para condenar os seus crimes e demonizar os palestinianos e os seus apoiantes é prova de expiação e apoio aos judeus. Em troca, Israel absolve o Ocidente da sua indiferença à situação dos judeus durante o Holocausto e a Alemanha por tê-lo perpetrado. A Alemanha usa essa aliança profana para separar o nazismo do resto da história alemã, incluindo o genocídio que os colonos alemães cometeram contra os Nama e os Herero na África do Sudoeste Alemã, hoje Namíbia.

«Essa magia», escreve o historiador israelita e estudioso do genocídio Raz Segal, «legitima o racismo contra os palestinianos no preciso momento em que Israel perpetra um genocídio contra eles. A ideia da singularidade do Holocausto, portanto, reproduz, em vez de desafiar, o nacionalismo excludente e o colonialismo que levaram ao Holocausto».

Segal, diretor do programa de Estudos sobre o Holocausto e Genocídio da Universidade de Stockton, em Nova Jérsia, escreveu um artigo sobre Gaza em 13 de outubro de 2023 — seis dias após a incursão do Hamas e de outros combatentes palestinianos em Israel — intitulado: “Um caso clássico de genocídio”. Esta denúncia de um estudioso israelita do Holocausto, cujos familiares pereceram no Holocausto, foi uma posição muito solitária. Segal viu na exigência imediata do governo israelita de que os palestinianos evacuassem o norte de Gaza e na demonização sangrenta dos palestinianos por parte das autoridades israelitas — o ministro da Defesa disse que Israel estava a «lutar contra animais humanos» — o fedor do genocídio. “A ideia por trás da prevenção e do ‘nunca mais’ é que existem sinais de alerta que, assim que os percebemos, devemos agir para impedir que o processo evolua para um genocídio”, disse Segal quando o entrevistei, “mesmo que ainda não seja um genocídio”. «Os estudos sobre o Holocausto como área de investigação podem estar mortos, o que não é necessariamente uma coisa má», continuou ele. «Se, de facto, os estudos sobre o Holocausto estão entrelaçados desde o início com a ideologia da memória global do Holocausto, talvez seja bom que não tenhamos mais estudos sobre o Holocausto. E talvez isso abra a porta para pesquisas ainda mais interessantes e importantes sobre o Holocausto como história, como história real.» Segal pagou pela seu coragem e honestidade. A oferta para liderar o Centro de Estudos sobre o Holocausto e Genocídio da Universidade de Minnesota — que não emitiu nenhuma condenação do genocídio — foi revogada.

Quase dois anos após o início do genocídio, a Associação Internacional de Estudiosos do Genocídio finalmente emitiu uma declaração afirmando que a conduta de Israel se enquadra na definição legal estabelecida na Convenção das Nações Unidas sobre Genocídio.

Mas a grande maioria dos estudiosos do Holocausto permanece em silêncio, condenando incessantemente as atrocidades cometidas pelo Hamas, enquanto ignora as cometidas por Israel. Eles permaneceram em silêncio quando a África do Sul argumentou perante o Tribunal Internacional de Justiça que Israel estava a cometer genocídio. Eles permaneceram em silêncio quando a Amnistia Internacional publicou um relatório em dezembro de 2024 acusando Israel de genocídio.

“Quantos estudantes palestinianos se candidatam a programas de pós-graduação em Estudos sobre o Holocausto e Genocídio em todo o mundo? Normalmente, nenhum. Quantos académicos palestinianos se identificam como especialistas nesta área? Também podem ser contados pelos dedos de uma mão”, escreve Segal num artigo em co-autoria publicado no Journal of Genocide Research.

O genocídio está codificado no ADN do imperialismo ocidental. A Palestina deixou isso claro. O genocídio é a próxima etapa do que o antropólogo Arjun Appadurai chama de “uma vasta correção malthusiana mundial” que é “voltada para preparar o mundo para os vencedores da globalização, sem o ruído inconveniente dos seus perdedores”.

O financiamento e o armamento de Israel pelos EUA e pelas nações europeias, enquanto este país leva a cabo um genocídio, destruíram a ordem jurídica internacional pós-Segunda Guerra Mundial. Esta já não tem credibilidade. O Ocidente não pode agora dar lições a ninguém sobre democracia, direitos humanos ou as supostas virtudes da civilização ocidental.

«Ao mesmo tempo que Gaza induz vertigem, uma sensação de caos e vazio, torna-se para inúmeras pessoas impotentes a condição essencial da consciência política e ética no século XXI — tal como a Primeira Guerra Mundial foi para uma geração no Ocidente», escreve Pankaj Mishra em «The World After Gaza» (O Mundo Depois de Gaza).

A capacidade de propagar a ficção de que o Holocausto nazi é único, ou que os judeus têm direitos exclusivos, chegou ao fim. O genocídio prenuncia uma nova ordem mundial, na qual a Europa e os EUA, juntamente com o seu representante Israel, são párias. Gaza iluminou uma verdade sombria — a barbárie e a civilização ocidental são inseparáveis.

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