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segunda-feira, 29 de setembro de 2025

LEITURAS MARGINAIS

A APPLE AMEAÇA PARAR DE VENDER IPHONES NA UE
Cory Doctorow, Medium. Trad. O'Lima


A Apple ameaçou parar de vender iPhones e outros dispositivos na União Europeia (lar de mais de 500 milhões de consumidores abastados) se o bloco não revogar a Lei dos Mercados Digitais, uma lei antimonopólio democraticamente responsável que proíbe a Apple de impedir terceiros de oferecer serviços aos proprietários de iPhones.

A Apple tem um aliado fiel nesta campanha para revogar as leis europeias: Donald Trump ameaçou a UE com tarifas alfandegárias, a menos que ela interrompa as suas tentativas de regulamentar gigantes tecnológicos norte-americanos como a Apple, cujo CEO bilionário, Tim Cook, deu a Donald Trump US$ 1 milhão em troca de um lugar na tribuna da posse de Trump e depois viajou novamente para Washington para montar à mão um troféu de participação dourado como presente para o aspirante a ditador fascista dos EUA.

Esta ameaça é estúpida e a UE deveria considerável um blufe. A empresa alega que está a agir no interesse dos proprietários europeus de produtos Apple. A Apple alega que, ao impedir os europeus de usar os seus dispositivos Apple com software e hardware de terceiros, está a proteger a privacidade dos seus clientes. Isso é um disparate. Embora seja verdade que a Apple protege a privacidade dos seus clientes contra algumas ameaças externas, a Apple também espia os seus utilizadores, sem o seu consentimento, a fim de recolher dados comportamentais que são usados para o sistema de segmentação de anúncios da Apple. Quando isso veio à tona, a Apple mentiu aos seus clientes sobre o assunto. A Apple utilizou o seu controlo exclusivo sobre que softwares podem operar nos seus dispositivos para expor todos os utilizadores chineses do iOS à vigilância governamental irrestrita. A Apple removeu todas as VPNs funcionais da sua loja de aplicativos chinesa. Depois, a empresa criou uma porta dos fundos no seu backup do iCloud para permitir acesso ilimitado às autoridades chinesas. Em seguida, removeram a possibilidade de partilhar mensagens anonimamente através do Airdrop para restringir o uso da ferramenta na divulgação de mensagens da oposição durante uma onda de protestos em massa na China (eles removeram essa funcionalidade para todos os utilizadores do Airdrop no mundo).

A ideia de que a Apple está tão comprometida com a privacidade dos seus utilizadores que prefere sair de um mercado importante a expor os utilizadores a riscos de vigilância é uma mentira óbvia — basta perguntar à China. Por que razão a Apple contaria essa mentira? Porque quer proteger os seus lucros — não os seus clientes.

A Apple mente quando afirma que o controlo sobre as suas plataformas tem como objetivo principal proteger os utilizadores. A App Store está «repleta de fraudes». No entanto, ao obrigar os clientes da Apple a obterem aplicações na loja da própria Apple, a empresa pode ficar com uma comissão de 30% sobre cada dólar que os seus clientes enviam a um fabricante de aplicações, um artista do Patreon, um meio de comunicação social ou qualquer outro fornecedor de aplicações — um negócio que vale 100 mil milhões de dólares por ano para a Apple. Refira-se que, na UE, o custo de processamento de um pagamento é entre 0% e 1%.

A Apple alega que protege os seus clientes contra riscos de privacidade, bloqueando oficinas de reparação de terceiros e exigindo que os seus clientes paguem caro por reparações oficiais. Mas os próprios técnicos de reparação da Apple foram apanhados a roubar e partilhar imagens de nudez dos seus próprios clientes, roubadas de telemóveis enviados à Apple. Isso aconteceu repetidamente em todo o mundo.

A Apple protege os seus clientes contra ameaças à privacidade, mas não contra a sua própria conduta predatória, invasiva da privacidade e extorsiva. A Apple também decide unilateralmente que golpes são permitidos na sua plataforma e quais não são, e só ela decide quando permitir a vigilância secreta e generalizada dos clientes da Apple.

As ameaças da Apple são mentiras, mas os riscos à privacidade da interoperabilidade são muito reais. É perfeitamente possível conectar algo a uma ferramenta segura que a torne insegura. É bom quando as empresas testam complementos de terceiros e alertam os seus clientes sobre modificações pós-venda defeituosas ou arriscadas e, na medida em que a Apple faz isso, está a fazer um bom trabalho. Mas a Apple tem um conflito de interesses irreconciliável quando se trata de vetar as decisões dos seus clientes sobre que produtos que não são da Apple eles usam. A Apple tem margens de lucro realmente impressionantes no processamento de pagamentos, reparações e outras linhas de negócios, e o CEO da Apple gabou-se publicamente de usar incompatibilidades deliberadamente projetadas para levar as pessoas a mudarem para os produtos da Apple.

Como podemos fazer com que a Apple proteja a privacidade dos seus clientes sem lhes roubar o dinheiro ou invadir a sua privacidade? Removendo o veto da empresa sobre quem pode criar software e hardware compatível com os produtos concorrentes da Apple. A decisão final sobre que produtos são perigosos demais para os europeus usarem não pode ser atribuída à Apple — em vez disso, deve ser atribuída a agências especializadas que trabalham para governos democraticamente responsáveis. Este é o ponto que Bennett Ciphers e eu defendemos no nosso manifesto da EFF intitulado «Privacy Without Monopoly» (Privacidade sem monopólio), que tem uma secção inteira explicando como a grande e robusta lei de privacidade da UE, o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD), torna esta proposta especialmente atraente na UE. (…)

A Apple não vai sair de um mercado com 500 milhões de consumidores abastados. Se o fizer, esperemos que os seus acionistas se vinguem da empresa. Sabe-se como as pessoas estão sempre a reclamar que os investidores só estão interessados em retornos a curto prazo? É verdade, e aqui está um ponto em que isso joga a nosso favor: os acionistas não vão aceitar sair amanhã de um mercado de 500 milhões de pessoas na expectativa de forçar a UE a capitular no próximo ano e, a partir daí, salvaguardar o esquema de extração de rendimentos da Apple à escala continental. Eles querem retorno sobre o seu capital amanhã (…)

A UE precisa sair da infraestrutura tecnológica dos EUA. Sob Trump, as grandes empresas de tecnologia e o governo dos EUA deixaram de fingir que as empresas tecnológicas americanas são independentes do governo dos EUA. Sabemos (pela China) que a Apple ficará feliz em abrir uma porta dos fundos nos seus servidores em nuvem para apaziguar governos autoritários como o de Xi Xinping. (…) As grandes empresas tecnológicas norte-americanas continuam a demonstrar que são, de facto, braços dos EUA e constituem uma potência estrangeira hostil a operar em solo europeu. Quando o Tribunal Penal Internacional indiciou os genocidas israelitas, Trump emitiu uma ordem executiva sancionando o órgão. Imediatamente depois, a Microsoft apagou as contas de e-mail e nuvem do procurador do TPI Karim Khan — nomeado na ordem executiva de Trump — e, em seguida, o presidente da Microsoft, Brad Smith, cometeu perjúrio ao negar o facto. A Microsoft admitiu publicamente que não pode impedir as autoridades norte-americanas de realizar vigilância secreta dos dados dos cidadãos da UE (e dos governos da UE), mesmo quando esses dados estão armazenados em servidores na UE.

A resposta da UE chama-se «Eurostack» — uma «pilha» completa de tecnologias, desde centros de dados a sistemas operativos e aplicações criadas e mantidas por entidades da UE (organizações com e sem fins lucrativos e organismos públicos). Quase toda a ênfase no Eurostack tem sido na construção dos centros de dados e na criação destas aplicações, mas, de certa forma, esta é a parte menos importante do projeto. Clonar o GDocs, o Office365 ou o iWork é a parte fácil. A parte difícil é migrar das plataformas controladas pelos EUA para os seus equivalentes no Eurostack. Se abandonar o Office365 significa deixar todos os documentos que a sua empresa, organização ou agência governamental já criou, ou perder todas as permissões de partilha e colaboração, ou perder todos os históricos de edição, bem, ninguém vai migrar. Felizmente, isso é algo que a tecnologia pode resolver facilmente: basta fazer engenharia reversa da oferta dos EUA e criar uma ferramenta que extraia e transforme os dados para o novo formato e mova uma cópia deles para os novos serviços Eurostack. Isso chama-se “interoperabilidade adversária” e é perfeitamente viável, como a Apple provou quando quebrou o monopólio do Microsoft Office ao criar o pacote iWork (Pages, Numbers e Keynote).

O principal impedimento para este tipo de ferramenta de migração em massa sem interrupções não é o desafio tecnológico — é a lei. Em 2001, a UE — sob pressão dos EUA — incluiu uma regra de «anti-evasão» na Diretiva da UE sobre Direitos de Autor (EUCD). O artigo 6.º da EUCD reflete a linguagem da Secção 1201 da Lei dos Direitos de Autor do Milénio Digital dos EUA, proibindo a engenharia reversa e a interoperabilidade adversária, mesmo quando não há violação de direitos de autor. Isso significa que uma empresa europeia que criou uma ferramenta de migração de contas para ajudar empresas ou agências governamentais europeias a transferir os seus próprios dados para fora de um silo da Big Tech dos EUA pode enfrentar responsabilidade nos termos do artigo 6.º da EUCD, com severas sanções penais e civis. A EUCD 6 concede às gigantes tecnológicas norte-americanas mais direitos sobre as obras protegidas por direitos de autor dos europeus do que aos próprios europeus que criaram essas obras. É uma lei terrível e, após um quarto de século, já ultrapassou há muito a sua data de validade.

Fechando o círculo: o artigo 6.º da EUCD é também a lei que impede as empresas europeias de fazerem engenharia reversa do iPhone e criarem as suas próprias lojas de aplicações, sem terem de depender da ajuda da Apple. Dado que a Apple violou flagrantemente as leis que a obrigam a abrir a sua loja de aplicações, é hora de libertar a talentosa legião de tecnólogos de topo da Europa para resolver o problema. Isso torna-se ainda mais fácil se a Apple sair da UE e abandonar os clientes europeus, cortando o fornecimento de patches de segurança e atualizações de aplicativos. Afinal, os europeus são donos dos seus dispositivos Apple. Cabe a eles — e não à Apple — decidir se querem confiar nos seus compatriotas europeus para proteger a sua segurança e adicionar novas funcionalidades à sua propriedade. A UE não precisa de ser uma consumidora de tecnologia — pode ser uma produtora de tecnologia. O duopólio Apple/Google pode ter dominado o mercado móvel com táticas monopolistas ilegais, mas isso não significa que a UE nunca irá gerar outra Nokia ou Ericsson. O caminho mais curto, eficiente e fiável para restabelecer a soberania tecnológica para os 500 milhões de residentes e 27 Estados-Membros da UE é permitir que as empresas nacionais assumam o controlo da relação entre os gigantes tecnológicos norte-americanos controlados por Trump e os europeus que dependem da sua tecnologia.

Se Trump pode confiscar empresas chinesas como a Tiktok e vendê-las aos seus principais doadores com um desconto de 90%, então as empresas norte-americanas não poderão queixar-se quando a UE se livrar da Diretiva de Direitos Autorais America First e permitir que os europeus optem por adquirir o seu software, atualizações e hardware de empresas europeias.

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