por Emmanuel Carré, The Conversation.
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“(…) À primeira vista, passar pela segurança do aeroporto pode parecer nada mais do que um procedimento técnico necessário. No entanto, visto de uma perspetiva antropológica, este momento mundano revela uma transformação das nossas identidades que é tão eficaz quanto subtil. Algo de estranho acontece nestas filas: entramos nelas como cidadãos, consumidores, profissionais - e saímos como "passageiros em trânsito". Esta metamorfose, que damos por garantida, merece um olhar mais atento.
A dinâmica da transformação ritual
O que nos chama a atenção nestas cenas de aeroporto é, em primeiro lugar, a desapropriação gradual e sistemática de objetos pessoais, vestuário e símbolos de estatuto depositados em caixotes de plástico antes de desaparecerem de vista. Depois, há o caráter arbitrário da lógica subjacente: porquê sapatos e não roupa interior? Porquê 100 ml e não 110 ml? Esta aparente falta de coerência serve, na verdade, um objetivo simbólico: criar uma sensação de desapropriação que toca nos atributos do estatuto social do indivíduo.
Já em 1909, o etnógrafo Arnold van Gennep identificava a separação como a primeira fase dos ritos de passagem. Os indivíduos têm de abandonar o seu estado anterior, desfazendo-se do que os definia no mundo secular. O executivo engravatado torna-se um corpo anónimo, temporariamente despojado do seu traje e sujeito ao mesmo olhar tecnológico que todos os outros. Este igualitarismo forçado não é um efeito secundário. Na verdade, é central ao processo: prepara a transformação da identidade, neutralizando, ainda que temporariamente, as hierarquias sociais habituais.
Depois vem o rastreio: scanners, detetores, perguntas sobre as intenções. "Porque viaja? Quem é que vai visitar? Foi você que fez as suas malas?" Cada viajante torna-se um suspeito temporário que tem de provar a sua inocência. Esta inversão do ónus da prova - do princípio fundamental de que se é "inocente até prova em contrário" - passa em grande parte despercebida, porque parece inteiramente "lógica" nestas circunstâncias.
Esta fase corresponde àquilo a que Van Gennep chamou a margem ou liminaridade, um conceito mais tarde desenvolvido pelo antropólogo Victor Turner: um momento em que os sujeitos, privados dos seus atributos sociais habituais, se encontram num estado de vulnerabilidade que os torna maleáveis e prontos a serem transformados. Neste entremeio tecnológico, já não somos cidadãos de pleno direito, nem somos ainda viajantes.
Por fim, há aquilo a que se chama a reintegração, para usar um outro termo cunhado por Van Gennep: somos agora autorizados a entrar na zona para além dos controlos de segurança. Oficialmente, passámos a ser "passageiros" - um estatuto que exige docilidade, paciência e a aceitação de vários constrangimentos "em nome da nossa própria segurança". Esta zona, com as suas lojas francas e os seus cafés caros, evidencia esta transformação ritual, uma vez que já não somos cidadãos que exercem o seu direito de viajar, mas consumidores globais em trânsito, despojados das nossas raízes políticas e territoriais.
O paradoxo do "teatro de segurança"
O paradoxo preocupante dos scanners de segurança é que, embora detetem eficazmente artigos proibidos (facas esquecidas, líquidos suspeitos) e funcionem como um verdadeiro dissuasor, ficam aquém quando confrontados com ameaças sofisticadas: em 2015, as equipas de teste dos EUA conseguiram contrabandear armas falsas em 95% das suas tentativas.
Entre 2007 e 2013, o programa norte-americano de deteção de comportamentos SPOT custou 900 milhões de dólares e não conseguiu detetar um único terrorista. Não detetou os únicos terroristas reais que passaram pelos aeroportos, mas não se registaram sequestros nos EUA. O programa parece, portanto, ser inútil (na ausência de qualquer ameaça real) e ineficaz (ao não detetar ameaças reais).
Esta falta de eficiência operacional é agravada por um grande desequilíbrio económico: de acordo com o engenheiro Mark Stewart e o cientista político John Mueller, a redução real do risco de terrorismo resultante das dezenas de milhões investidos anualmente pelos aeroportos é tão limitada que os custos ultrapassam de longe os benefícios pretendidos. O especialista em segurança Bruce Schneier refere-se a esta lógica como "teatro de segurança" - medidas concebidas principalmente para tranquilizar o público em vez de neutralizar as ameaças mais graves. Estas medidas não são disfuncionais, mas antes uma resposta racional às expectativas sociais.
Após um ataque terrorista, o público espera medidas visíveis que, embora de eficácia questionável, acalmem os receios coletivos. O "teatro da segurança" responde a esta exigência produzindo um sentimento de proteção que ajuda a manter a confiança no sistema. Os investigadores Razaq Raj e Steve Wood, da Universidade Leeds Beckett, descrevem como este teatro é encenado de forma tranquilizadora, mas por vezes discriminatória, nos aeroportos. Isto explica por que razão estas medidas persistem e estão a tornar-se mais comuns, apesar dos seus resultados limitados. Além disso, contribuem para reforçar uma aceitação tácita da autoridade. Este fenómeno assenta em grande parte no preconceito do status quo, que nos prende a sistemas estabelecidos, e numa dinâmica social de exigências de segurança cada vez maiores, sem possibilidade aparente de voltar atrás.
Aprendendo a ser dócil
Estes controlos de segurança ensinam-nos algo mais significativo do que parece. Condicionam-nos a aceitar a vigilância como algo normal e necessário, até mesmo benevolente. Esta aceitação não se limita aos aeroportos, estende-se a outros contextos sociais. Aprendemos a "mostrar a nossa identificação", a justificar os nossos movimentos e a aceitar que os nossos corpos sejam escrutinados "para o nosso próprio bem".
Este sistema também funciona invertendo os papéis. A resistência torna-se suspeita: qualquer pessoa que questione os procedimentos, recuse uma revista adicional ou se aborreça com os atrasos é automaticamente rotulada como um "problema". O caráter binário desta classificação moral - passageiros bons e dóceis versus passageiros difíceis - tende a transformar a crítica numa indicação de potencial culpa. Com o tempo, os gestos de segurança nos aeroportos e a sua repetição tornam-se parte dos nossos hábitos corporais. Antecipamos os constrangimentos usando sapatos sem atacadores, transportando líquidos pré-embalados e tornando os nossos computadores acessíveis. Desenvolvemos aquilo a que o filósofo Michel Foucault chamou "corpos dóceis": corpos treinados pela disciplina para interiorizar os constrangimentos e facilitar o controlo.
Para além dos aeroportos
A pandemia de Covid-19 também introduziu práticas semelhantes: certificados, passes e comportamentos que se tornaram quase rituais. Habituámo-nos a "mostrar o BI" para aceder aos espaços públicos. A cada novo choque, estabelecem-se novas regras coletivas, que alteram permanentemente os nossos pontos de referência.
A exigência de os passageiros tirarem os sapatos nos aeroportos remonta, na verdade, a uma única tentativa falhada de levar a cabo um ataque terrorista: o incidente de dezembro de 2001, em que um homem chamado Richard Reid escondeu explosivos nos sapatos. Um homem, um falhanço... e os viajantes cumprem rotineiramente, 24 anos depois, o requisito que ainda existe. Este é apenas um exemplo de um acontecimento entre outros que ressoam como "mitos fundadores" utilizados para normalizar um certo número de condicionalismos.
O sociólogo francês Didier Fassin constata a emergência de um "governo moral", onde a obediência se torna uma prova de ética e onde questionar o controlo se torna um sinal de irresponsabilidade cívica. Esta evolução é notável pelo facto de ser em grande parte invisível: não vemos o ritual em ação, apenas experimentamos as "medidas necessárias". Esta normalização explica provavelmente o facto de estas transformações encontrarem pouca ou nenhuma resistência.
A antropologia ensina-nos que os rituais mais eficazes são aqueles que já não são percebidos como tal. Tornam-se óbvios, necessários e indiscutíveis. O sistema utiliza aquilo a que o cientista político norte-americano Cass Sunstein chama "sludge". Ao contrário do "nudge", que encoraja subtilmente o bom comportamento, o sludge funciona através da fricção, tornando a resistência mais dispendiosa do que a cooperação. A investigação em psicologia social sobre o cumprimento sem pressão sugere que é mais provável aceitarmos restrições quando sentimos que as escolhemos. Ao acreditarmos que estamos a fazer uma escolha livre para embarcar num avião, aceitamos livremente todos os constrangimentos que o acompanham.
Desafiando o óbvio
O reconhecimento consciente de tais mecanismos não implica necessariamente que eles devam ser criticados ou contrariados. Há requisitos legítimos associados à segurança coletiva. No entanto, a consciência destas transformações leva-nos a questionar e a discutir a sua lógica, em vez de nos submetermos cegamente a elas.
A filósofa Hannah Arendt salientou que compreender o poder é um passo para recuperar a capacidade de ação. Talvez seja isso que esteja aqui em causa - não rejeitar todos os constrangimentos, mas manter a capacidade de refletir sobre eles."

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