quinta-feira, 22 de agosto de 2024

LEITURAS À MARGEM

White Trash - A história não contada de 400 anos de classes na América (1)


“A fundação da cidade de Jamestown, em 1607, pode não ter um feriado nacional, mas tem uma fábula muito mais sensual: o dramático salvamento de John Smith pela "princesa índia" Pocahontas. Segundo a estória, no meio de uma cerimónia solene, a "filha amada" do "rei" Powhatan, de onze anos, correu e colocou a cabeça sobre Smith, impedindo os membros da tribo de lhe esmagarem o crânio com os seus bastões. (...)

Os académicos têm debatido se o salvamento de Smith alguma vez aconteceu, uma vez que apenas existe o seu relato e a sua versão mais elaborada foi publicada anos depois da morte de Pocahontas. Smith era um aventureiro militar, um auto-promotor, um plebeu, que tinha o hábito irritante de exagerar as suas façanhas. A sua estória do salvamento imitava na perfeição uma popular balada escocesa da época, em que a bela filha de um príncipe turco salva um aventureiro inglês que está prestes a perder a cabeça.(...)

A estória de Pocahontas exige que a princesa rejeite o seu próprio povo e cultura. Este tema poderoso tem persistido, como observa a historiadora Nancy Shoemaker, porque contribui para a lógica nacional mais alargada da participação voluntária dos índios na sua própria morte. No entanto, essa jovem não viveu voluntariamente em Jamestown; foi levada cativa. No jardim paradisíaco da Virgínia primitiva que nunca existiu, a guerra e o sofrimento, a ganância e a conquista colonial estão convenientemente ausentes. A dissonância cultural e de classes desaparece por magia para que as origens americanas sejam transformadas numa utópica estória de amor.”

Nancy Isenberg, White Trash – The 400-year untold history of class in America. Atlantic Books 2017, pp 8-10. Trad. OLima 2024.

Sem comentários: