Adriano Miranda/Público
“Rui Moreira, um dos responsáveis políticos pela destruição em massa do património arquitectónico da cidade do Porto e pela desfi guração de amplas partes da cidade com uma política de desregulação e liberalização urbana total, veio a público indignado queixar-se das paragens de metrobus que Álvaro Siza desenhou para as avenidas Marechal Gomes da Costa e Boavista (estruturas que estão ainda em construção). Ora, isto não significa que a intervenção da Metro do Porto não deva estar sujeita a uma crítica. Mas numa altura em que a especulação imobiliária segue em velocidade máxima, sem qualquer intervenção por parte das instituições públicas responsáveis, é no mínimo caricato ouvir estas declarações. Passando pelo projecto do novo Matadouro, pelo megaempreendimento que quase engole a pequena Capela da Nossa Senhora da Conceição — ali perto do Largo de Mompilher — e por tantos outros projectos que têm levado a uma sobreocupação vertical e horizontal do solo urbano, diria que as paragens desenhadas por Álvaro Siza deveriam ser a última preocupação do autarca. No entanto, o que tivemos nos últimos anos foi uma política urbana camarária guiada quase exclusivamente pelo “direito ao investimento” e muito pouco pelo “direito à cidade”, numa clara política de classe, onde a desqualificação do espaço e dos equipamentos públicos em determinadas zonas da cidade tem sido uma constante. Porto: uma cidade-marca que foi capaz de desenhar um plano de atracção de investimento para colocar a rentabilizar ao máximo o seu parque imobiliário, mas foi, por outro lado, completamente “incapaz” de construir uma política de espaço público e de habitação acessível orientada não apenas para uma possibilidade de acesso geral à cidade, mas para o melhoramento de uma qualidade de vida urbana que é, em vários aspectos, bastante pobre (uma cidade de poucos jardins ou de jardins abandonados, com poucos equipamentos públicos e com um cuidado puramente tecnocrático do espaço público, sem uma política ambiental coerente, onde abundam carros, passeios em cimento — ou até mesmo em asfalto, como no caso da recente e desastrosa intervenção na Avenida de Fernão Magalhães — e poucas ou quase nenhumas árvores). Por outro lado, esse “liberalismo” que o autarca tanto valoriza como património imaterial da cidade é hoje pouco mais do que uma quimera, a não ser que se seja proprietário, porque pouca iniciativa privada pode subsistir numa cidade onde as rendas absurdas tornam incomportável qualquer negócio que não esteja directamente dirigido para o turismo ou que não pertença a uma grande multinacional. No centro, só muito a custo se pode encontrar tal coisa como uma cidade, tudo se transformou num parque temático.
O centro histórico é, hoje, pouco mais que um simulacro. Nada há de diferente entre o famoso último piso de restauração do Centro Comercial Via Catarina e as ruas da Sé, a não ser os problemas sociais que aí se mantêm e a solidão dos poucos moradores que ainda restam. A política de atracção de investimento não significou uma valorização qualitativa da cidade: máxima rentabilidade para a finança e proprietários, pouco retorno para a cidade; monofuncionalização turística no centro e dispersão total de um ambiente urbano envolvente desagregado e sem capacidade de constituir um centro e de constituir qualquer coisa próxima de uma comunidade de pessoas. Se o programa pós-Rui Rio de devolver a cultura à cidade falhou, foi porque a cultura acabou a servir como instrumento de esvaziamento e não de reconstrução crítica da cidade. E, por isso mesmo, o problema do Porto não está apenas na colonização do centro histórico pela indústria do turismo — está na incapacidade generalizada de criar “cidade”, isto é, de constituir espaços e estruturas urbanas socialmente e culturalmente qualificadas, heterogéneas, acessíveis, que não sejam meros dormitórios ou parques temáticos. Mas é preciso ainda referir: não foi o Alojamento Local que reabilitou os centros históricos, mas sim todo um conjunto de políticas públicas que zeram do turismo o núcleo fundamental da economia e apostaram na especulação imobiliária. Do mesmo modo, o abandono e a desertificação dos centros não foi um processo natural que o AL veio salvar, mas foi o resultado de cinquenta anos de políticas suburbanas de esvaziamento dos núcleos das cidades ligado ao estabelecimento de um modelo que se baseava no entrelaçamento de três eixos fundamentais que mobilizaram a economia nacional no pós-25 de Abril: casa, carro e shopping. Isto é, um modelo que assentava na valorização dos solos periféricos, num sistema do crédito boni cado para a classe média e num sector da construção civil pouco pro ssionalizado e sem grande capacidade para intervir em processos de reabilitação. Esse modelo terminou de nitivamente em 2008 com a crise financeira, obrigando Portugal, ao longo dos anos da troika, a redireccionar a sua economia para o turismo.
Ora, para concluir e regressando às paragens de metrobus, Rui Moreira preferiria umas “coisas levezinhas, envidraçadas”, quase invisíveis, para não perturbar as vistas idílicas da burguesia local. Ora, talvez me aventurasse a dizer que, para Álvaro Siza, que conserva ainda um sentido profundo e social daquilo que é fazer uma cidade — ao contrário do autarca portuense —, as paragens desenhadas em betão correspondem precisamente ao gesto arquitectónico de procurar marcar e tornar visível no espaço urbano aquilo a que a classe a que Rui Moreira pertence tende a não aceitar: o facto de a cidade não ser apenas a sua propriedade exclusiva, mas de todos. Nada há de mais social e definidor do território urbano do que esses pequenos equipamentos públicos tantas vezes desqualificados (inclusive pela própria CMP). São estes, na verdade, os grandes monumentos da vida quotidiana das cidades e dos seus moradores; e não certamente as vivendas privadas endinheiradas e kitsch da Avenida do Marechal Gomes da Costa. É essa defesa da cidade como bem público, de todos e para todos, que um arquitecto como Álvaro Siza procura, com os seus poucos meios, ainda defender — até ao ponto da sua monumentalização — e que alguém como Rui Moreira jamais poderá compreender. Como referia na mesma ocasião o autarca, é mesmo uma “questão de vacas sagradas”.
Pedro Levi Bismarck, Cidade: bem público (E um elogio a Álvaro Siza) – Público 11jul2024.
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