“Eram as cinco em ponto da tarde de 10 de agosto de 1975. Debaixo de um sol escaldante, camponeses e trabalhadores rurais pobres, em fatos de domingo, engrossam o caudal de milhares de manifestantes. Pelas principais ruas e avenidas de Braga, caminham ao lado de mulheres e crianças levadas por tratores. Cristãos de variadas paisagens nortenhas compõem a mole humana. A convocatória para a ação de solidariedade com o Episcopado tivera a bênção do arcebispo primaz de Braga, D. Francisco Maria da Silva, na sequência de idênticas concentrações religiosas nas dioceses de Aveiro, Viseu, Bragança e Coimbra. Após décadas de ditadura, o ‘povo de Deus’ saía à rua e protestava. Em termos formais, estava em causa a luta pela restituição da Rádio Renascença à propriedade do Patriarcado de Lisboa e da Igreja. (…)
Nessa agitação, ‘participaram todos de mãos dadas: bases do CDS, do PPM, do PPD e do PS’, assumira ele. Não espantara, por isso, que naquela tarde de canícula, em Braga, a grandiosa manifestação tivesse em Romeu Maia, dirigente distrital socialista, um dos mais dinâmicos organizadores. (…)
No dispersar da concentração, uns poucos milhares dirigem-se à Praça Conde de Agrolongo, onde fica a sede do PCP. (…)
Vários indivíduos trepam à varanda da sede. Rasgam e queimam a bandeira comunista, destroem a placa vermelha da sede, urram como caçadores primitivos. São lançadas garrafas com gasolina. No interior, os membros do PCP tentam proteger-se numa minúscula dependência com acesso para o pequeno jardim das traseiras. As chamas começam a tomar conta do prédio, há labaredas na fachada. Chegam os primeiros soldados do Regimento de Infantaria de Braga, mas insuficientes para pôr a turba em ordem. Durante horas, os bombeiros são impedidos de atuar. Jacques Bekaert vê desaprovação nos rostos de pessoas não afetas ao PCP e até de anticomunistas. Mas há quem concorde e se delicie com o espetáculo. Para o jornalista belga tudo parecera premeditado. ‘O assalto não foi um movimento espontâneo da multidão’, descreverá mais tarde, condenando ‘a passividade das forças da ordem’.
Feridos são transportados ao hospital, passa da meia-noite quando chegam as tropas do COPCON, mas, apesar do gás lacrimogéneo e das balas de borracha, os ânimos só serenam às duas da manhã. A fúria, essa, transferir-se-á, nas horas seguintes, para as sedes do MDP/CDE, da Intersindical e do INATEL. E nem as barracas do Mercado do Povo escapam ao vandalismo.”
Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu (2017) – Oficina do Livro 2022, pp 169-172.
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