Vários
indicadores mostram cada vez mais claramente que o capitalismo industrial global
está a colidir com os limites ecológicos: pandemias, incêndios devastadores,
proliferação de fenómenos meteorológicos extremos, perturbações energéticas,
escassez. Temos de aprender a viver num mundo condicionado pelas alterações
climáticas (ipcc, 2021), pela crise dos ecossistemas (ipbes, 2019) e por uma
oferta limitada de energia (AIE, 2020) e de materiais (Banco Mundial, 2017).
Este é o melhor cenário possível, porque a realidade é que a degradação dos
ecossistemas pode lançar-nos para situações mais profundas de
irreversibilidade. A ativação de loops de feedback climático positivo é um
exemplo paradigmático destes perigos que enfrentamos (Steffen et al., 2018). Se
isto acontecer, será o sistema terrestre como um todo que marcará o ritmo do
aquecimento global e as medidas de redução das emissões humanas serão
relativamente irrelevantes. Inevitavelmente, esta crise sistémica será
acompanhada por grandes transformações políticas, económicas e culturais.
Dois elementos
determinarão a forma destas transformações num futuro próximo. O primeiro é o
nível de degradação ecológica do planeta. Quanto mais avançar a destruição dos
ecossistemas de que dependemos, menos pessoas poderão habitar a terra e mais
difícil será para elas levar uma vida digna. É, pois, fundamental travar as
dinâmicas destrutivas associadas ao capitalismo, nomeadamente ao capitalismo
industrial.
Deste ponto de
vista, o ecológico, para qualquer ordem social com pretensões de sobrevivência
no tempo, é obrigatório acabar por trabalhar sob o paradigma da
sustentabilidade, contemplar de uma forma ou de outra os limites físicos e os
equilíbrios ecossistémicos e climáticos. Isso não está a acontecer agora para
além de parte do ambientalismo, do campesinato ou das populações indígenas. Por
um lado, os diferentes formatos de capitalismo verde levam em conta, na melhor
das hipóteses, alguns elementos da crise ambiental, mas à custa de aprofundar
outros, numa tentativa de manter a dinâmica expansiva do sistema. Por outro
lado, os movimentos de extrema-direita combinam uma negação discursiva da crise
com políticas que, paradoxalmente, a têm em conta (embora numa perspetiva de
fixação de privilégios). Desta forma, o encerramento das fronteiras pode ser
entendido sob a ideia de "ninguém mais entra aqui", algo que tem uma
dose de realidade física se não se quiser empreender uma distribuição e levar
uma vida frugal. Em todo o caso, as opções sociais terão de incorporar, em
maior ou menor grau, a sustentabilidade, pois dela dependerá a sua viabilidade.
Assim, uma questão-chave nos tempos que se avizinham não é a de saber se
seremos capazes de desencadear coletivamente processos de transformação social
capazes de inaugurar uma relação pacífica com o resto da vida no planeta, mas
sim se seremos capazes de o fazer a tempo, quando ainda existe uma pequena
margem para talvez não ativar os loops de feedback positivo que destruirão
definitivamente o atual equilíbrio climático e ecossistémico.
O segundo
elemento central nestas transições é o grau de igualdade, justiça, liberdade e
democracia que estas novas ordens serão (ou não) capazes de garantir. Há uma
enorme variedade de formas de organização social capazes de garantir os níveis
mínimos de sustentabilidade acima referidos. É possível que assistamos a
reduções drásticas da igualdade para garantir o consumo de pequenas minorias
tendo em conta a capacidade de carga dos ecossistemas, ou à extensão de modelos
autoritários que salvaguardam o equilíbrio ecológico à custa da asfixia da
liberdade. Mas estas não são as únicas opções; uma organização social
consciente da crise atual pode também ser justa e democrática, desenvolvendo a
autonomia a todos os níveis. Na realidade, estes são formatos
"ideais", e entre eles há toda uma série de cinzentos e hibridações
que são susceptíveis de serem utilizados ao máximo. Ou seja, nem o confronto
com os limites ecológicos da civilização industrial abre necessariamente a
porta a ordens eco-fascistas ou autoritárias, nem a ordens eco-sociais. No que
respeita à construção de cenários sociais, nada é definitivo. Nenhuma ordem
política será o resultado automático do desenrolar das perigosíssimas dinâmicas
em curso. Todos os formatos de sociedade que podem ser implantados dentro das
margens de disponibilidade energética e material e das funções ecossistémicas
disponíveis estão em aberto e dependem das lutas sociais que se articulam. Isto
não significa, no entanto, que todos eles tenham as mesmas possibilidades de se
desenvolverem nas condições sociológicas actuais.
É na
encruzilhada entre estes dois elementos, e no meio da incerteza que está
associada aos seus muitos desafios e arestas, que nos colocámos para escrever
este livro. Sentimos que temos a responsabilidade de exercitar a nossa
imaginação, de não sucumbir a visões apocalípticas, nem de nos contentarmos com
uma continuidade verde e reformista do existente, que acreditamos ser uma quase
garantia do prolongamento da destruição ecológica e, acreditamos, de ordens
sociais eco-autoritárias ou eco-fascistas. Assim, propusemo-nos imaginar
itinerários de transformação com potencial para nos conduzir a ordens sociais
que, por um lado, se integrem com os ecossistemas à enorme velocidade de que
hoje necessitamos e, por outro lado, produzam uma profunda mutação social que,
através do empoderamento coletivo, dê origem a sociedades livres, justas e
democráticas.
É a esta
dinâmica social que chamamos decrescimento. Outros poderiam ter preferido falar
de "emergência climática, biodiversidade, material e energética", de
"adaptação profunda ao colapso sistémico" ou de "programa
gaiano". A nossa escolha de terminologia deve-se a dois elementos. Por um
lado, acreditamos que a noção de decrescimento nos permite focar a contração do
nosso metabolismo social, que tende para uma expansão constante impossível. Por
outro lado, é um termo que já goza de uma certa projeção política e que arrasta
consigo dinâmicas de resistência e de criação social que, embora minoritárias,
já fazem parte do ecossistema político do nosso território. Seja como for,
apesar de o utilizarmos, não nos agarramos ao termo, pois estamos conscientes
de que, se tem virtudes nalguns domínios, também tem fragilidades noutros. Para
além das denominações, o importante é que precisamos de pôr em prática
processos sociais que garantam a autonomia, a possibilidade real de as
comunidades tomarem decisões sobre o seu destino político e a satisfação
universal de todas as necessidades em harmonia com o funcionamento da teia da
vida. Este livro trata da forma como podemos alcançar este objetivo no contexto
espanhol. Quando falamos de decrescimento, não pretendemos definir o termo.
Certamente que outras pessoas, enquadradas na mesma corrente política,
discordam de algumas das propostas que apresentamos. Mesmo entre nós, também o
fazemos. O conteúdo deste livro não pretende ser uma cátedra.
Além disso,
apesar da sua estrutura propositiva, estas páginas não pretendem ser um
programa de governo ou um manual de instruções. Elas devem ser entendidas como
um fermento ou uma semente. Para desenvolverem o seu potencial, devem ser
metabolizadas, ou seja, assimiladas e transformadas pela sociedade. O nosso
objetivo não é dirigir ou liderar, mas fazer parte dos processos sociais
emancipatórios num tempo convulsivo que nos trará possivelmente o melhor e o
pior e no qual, para nosso pesar, poderemos mesmo jogar quase tudo como
espécie. Somos tristes protagonistas daquela antiga maldição chinesa que
consistia em sabermo-nos habitantes de tempos interessantes.
Finalmente,
embora o texto tenha sido assinado por dois de nós, na realidade o que aqui se
apresenta são ideias partilhadas e discutidas com muitos outros no seio dos
movimentos sociais, em particular no movimento ambientalista e, mais
especificamente, em Ecologistas en Acción. Não pensamos que estamos a fazer
contribuições radicalmente novas, mas sim uma digestão de pensamentos
coletivos. Deste modo, a autoria é, de facto, bastante coletiva. Em todo o
caso, Walter Actis merece uma menção especial, uma vez que deu contributos
específicos substanciais para este livro. E Yayo Herrero também, pois fez uma
leitura pormenorizada do texto que resultou em suculentos retornos.
Antes de entrarmos nos pormenores da nossa proposta, faremos uma breve caraterização do contexto ecológico que constitui o seu ponto de partida. Explicaremos também porque é que neste livro decidimos centrar-nos no nível económico e, dentro deste, na economia produtiva. Finalmente, para concluir esta introdução, resumimos as principais ideias que propomos.
Este excerto,
que corresponde à introdução, foi retirado do livro "Decrecimiento: del
qué al cómo. Propostas para o Estado Espanhol" (Icaria, 2023), de Luis
González Reyes e Adrián Almazán.
Via Climática.
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