segunda-feira, 3 de julho de 2023

Reflexão – “O decrescimento: do quê ao como. Propostas para o Estado espanhol"

Vários indicadores mostram cada vez mais claramente que o capitalismo industrial global está a colidir com os limites ecológicos: pandemias, incêndios devastadores, proliferação de fenómenos meteorológicos extremos, perturbações energéticas, escassez. Temos de aprender a viver num mundo condicionado pelas alterações climáticas (ipcc, 2021), pela crise dos ecossistemas (ipbes, 2019) e por uma oferta limitada de energia (AIE, 2020) e de materiais (Banco Mundial, 2017). Este é o melhor cenário possível, porque a realidade é que a degradação dos ecossistemas pode lançar-nos para situações mais profundas de irreversibilidade. A ativação de loops de feedback climático positivo é um exemplo paradigmático destes perigos que enfrentamos (Steffen et al., 2018). Se isto acontecer, será o sistema terrestre como um todo que marcará o ritmo do aquecimento global e as medidas de redução das emissões humanas serão relativamente irrelevantes. Inevitavelmente, esta crise sistémica será acompanhada por grandes transformações políticas, económicas e culturais.

Dois elementos determinarão a forma destas transformações num futuro próximo. O primeiro é o nível de degradação ecológica do planeta. Quanto mais avançar a destruição dos ecossistemas de que dependemos, menos pessoas poderão habitar a terra e mais difícil será para elas levar uma vida digna. É, pois, fundamental travar as dinâmicas destrutivas associadas ao capitalismo, nomeadamente ao capitalismo industrial.

Deste ponto de vista, o ecológico, para qualquer ordem social com pretensões de sobrevivência no tempo, é obrigatório acabar por trabalhar sob o paradigma da sustentabilidade, contemplar de uma forma ou de outra os limites físicos e os equilíbrios ecossistémicos e climáticos. Isso não está a acontecer agora para além de parte do ambientalismo, do campesinato ou das populações indígenas. Por um lado, os diferentes formatos de capitalismo verde levam em conta, na melhor das hipóteses, alguns elementos da crise ambiental, mas à custa de aprofundar outros, numa tentativa de manter a dinâmica expansiva do sistema. Por outro lado, os movimentos de extrema-direita combinam uma negação discursiva da crise com políticas que, paradoxalmente, a têm em conta (embora numa perspetiva de fixação de privilégios). Desta forma, o encerramento das fronteiras pode ser entendido sob a ideia de "ninguém mais entra aqui", algo que tem uma dose de realidade física se não se quiser empreender uma distribuição e levar uma vida frugal. Em todo o caso, as opções sociais terão de incorporar, em maior ou menor grau, a sustentabilidade, pois dela dependerá a sua viabilidade. Assim, uma questão-chave nos tempos que se avizinham não é a de saber se seremos capazes de desencadear coletivamente processos de transformação social capazes de inaugurar uma relação pacífica com o resto da vida no planeta, mas sim se seremos capazes de o fazer a tempo, quando ainda existe uma pequena margem para talvez não ativar os loops de feedback positivo que destruirão definitivamente o atual equilíbrio climático e ecossistémico.

O segundo elemento central nestas transições é o grau de igualdade, justiça, liberdade e democracia que estas novas ordens serão (ou não) capazes de garantir. Há uma enorme variedade de formas de organização social capazes de garantir os níveis mínimos de sustentabilidade acima referidos. É possível que assistamos a reduções drásticas da igualdade para garantir o consumo de pequenas minorias tendo em conta a capacidade de carga dos ecossistemas, ou à extensão de modelos autoritários que salvaguardam o equilíbrio ecológico à custa da asfixia da liberdade. Mas estas não são as únicas opções; uma organização social consciente da crise atual pode também ser justa e democrática, desenvolvendo a autonomia a todos os níveis. Na realidade, estes são formatos "ideais", e entre eles há toda uma série de cinzentos e hibridações que são susceptíveis de serem utilizados ao máximo. Ou seja, nem o confronto com os limites ecológicos da civilização industrial abre necessariamente a porta a ordens eco-fascistas ou autoritárias, nem a ordens eco-sociais. No que respeita à construção de cenários sociais, nada é definitivo. Nenhuma ordem política será o resultado automático do desenrolar das perigosíssimas dinâmicas em curso. Todos os formatos de sociedade que podem ser implantados dentro das margens de disponibilidade energética e material e das funções ecossistémicas disponíveis estão em aberto e dependem das lutas sociais que se articulam. Isto não significa, no entanto, que todos eles tenham as mesmas possibilidades de se desenvolverem nas condições sociológicas actuais.

É na encruzilhada entre estes dois elementos, e no meio da incerteza que está associada aos seus muitos desafios e arestas, que nos colocámos para escrever este livro. Sentimos que temos a responsabilidade de exercitar a nossa imaginação, de não sucumbir a visões apocalípticas, nem de nos contentarmos com uma continuidade verde e reformista do existente, que acreditamos ser uma quase garantia do prolongamento da destruição ecológica e, acreditamos, de ordens sociais eco-autoritárias ou eco-fascistas. Assim, propusemo-nos imaginar itinerários de transformação com potencial para nos conduzir a ordens sociais que, por um lado, se integrem com os ecossistemas à enorme velocidade de que hoje necessitamos e, por outro lado, produzam uma profunda mutação social que, através do empoderamento coletivo, dê origem a sociedades livres, justas e democráticas.

É a esta dinâmica social que chamamos decrescimento. Outros poderiam ter preferido falar de "emergência climática, biodiversidade, material e energética", de "adaptação profunda ao colapso sistémico" ou de "programa gaiano". A nossa escolha de terminologia deve-se a dois elementos. Por um lado, acreditamos que a noção de decrescimento nos permite focar a contração do nosso metabolismo social, que tende para uma expansão constante impossível. Por outro lado, é um termo que já goza de uma certa projeção política e que arrasta consigo dinâmicas de resistência e de criação social que, embora minoritárias, já fazem parte do ecossistema político do nosso território. Seja como for, apesar de o utilizarmos, não nos agarramos ao termo, pois estamos conscientes de que, se tem virtudes nalguns domínios, também tem fragilidades noutros. Para além das denominações, o importante é que precisamos de pôr em prática processos sociais que garantam a autonomia, a possibilidade real de as comunidades tomarem decisões sobre o seu destino político e a satisfação universal de todas as necessidades em harmonia com o funcionamento da teia da vida. Este livro trata da forma como podemos alcançar este objetivo no contexto espanhol. Quando falamos de decrescimento, não pretendemos definir o termo. Certamente que outras pessoas, enquadradas na mesma corrente política, discordam de algumas das propostas que apresentamos. Mesmo entre nós, também o fazemos. O conteúdo deste livro não pretende ser uma cátedra.

Além disso, apesar da sua estrutura propositiva, estas páginas não pretendem ser um programa de governo ou um manual de instruções. Elas devem ser entendidas como um fermento ou uma semente. Para desenvolverem o seu potencial, devem ser metabolizadas, ou seja, assimiladas e transformadas pela sociedade. O nosso objetivo não é dirigir ou liderar, mas fazer parte dos processos sociais emancipatórios num tempo convulsivo que nos trará possivelmente o melhor e o pior e no qual, para nosso pesar, poderemos mesmo jogar quase tudo como espécie. Somos tristes protagonistas daquela antiga maldição chinesa que consistia em sabermo-nos habitantes de tempos interessantes.

Finalmente, embora o texto tenha sido assinado por dois de nós, na realidade o que aqui se apresenta são ideias partilhadas e discutidas com muitos outros no seio dos movimentos sociais, em particular no movimento ambientalista e, mais especificamente, em Ecologistas en Acción. Não pensamos que estamos a fazer contribuições radicalmente novas, mas sim uma digestão de pensamentos coletivos. Deste modo, a autoria é, de facto, bastante coletiva. Em todo o caso, Walter Actis merece uma menção especial, uma vez que deu contributos específicos substanciais para este livro. E Yayo Herrero também, pois fez uma leitura pormenorizada do texto que resultou em suculentos retornos.

Antes de entrarmos nos pormenores da nossa proposta, faremos uma breve caraterização do contexto ecológico que constitui o seu ponto de partida. Explicaremos também porque é que neste livro decidimos centrar-nos no nível económico e, dentro deste, na economia produtiva. Finalmente, para concluir esta introdução, resumimos as principais ideias que propomos.

Este excerto, que corresponde à introdução, foi retirado do livro "Decrecimiento: del qué al cómo. Propostas para o Estado Espanhol" (Icaria, 2023), de Luis González Reyes e Adrián Almazán.

Via Climática.

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