Bico calado
- «(…) Durante a
pandemia, os países do sul global insistiram em vão que as grandes empresas de
produção de vacinas do norte global abrissem mão dos direitos de patente de
modo a permitir a ampla e barata vacinação das suas populações. Não
admira que os embaixadores da Europa e dos EUA não tenham agora qualquer
credibilidade ou autoridade para exigir a estes países que apliquem sanções à
Rússia. Tanto mais que, no auge da crise pandémica, a ajuda que receberam veio
sobretudo da Rússia e da China. (...) A mesma falta de credibilidade e
autoridade ocorre quando os países do sul global são intimados a mostrar
respeito pela "ordem internacional baseada em regras". Durante
décadas (senão séculos) o Ocidente impôs unilateralmente as suas regras,
arrogou-se o privilégio de as declarar universais, ao mesmo tempo que se
reservou o direito de as suspender e violar sempre que isso lhe conveio. Eis
algumas perguntas que ocorrem a estes países. Quantos países foram invadidos
sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, da Jugoslávia ao Iraque, da
Líbia à Síria? Por que razão vivem enterrados em prisões ou em exílios todos os
que ousam pôr a nu o abismo entre os princípios e as práticas, como ilustram os
casos de Julian Assange e de Edward Snowden? Por que é que o ouro da Venezuela
continua retido nos bancos do Reino Unido (e não só), tal como as reservas do
Afeganistão continuam congeladas enquanto a população afegã morre de fome?
Ninguém imagina na Europa o ridículo em que cai o Secretário-Geral da NATO quando
é ouvido no sul global a invetivar a Rússia por usar o gaz e petróleo como arma
de guerra, quando há tanto tempo muitos países vivem sob a arma de guerra do
sistema financeiro global controlado pelos EUA (sanções, embargos, restrições).
Finalmente, em 8 de fevereiro passado, o respeitado jornalista norte-americano
Seymour Hersh revelou com informação concludente que foram os EUA quem, de
facto, planeou, a partir de dezembro de 2021, a sabotagem dos gasodutos Nord
Stream 1 e Nord Stream 2. Se assim foi, estamos perante um crime hediondo que
configura um ato de terrorismo de Estado que não só causa um irreparável
desastre ambiental como cria um precedente imprevisível para todas as
infraestruturas submarinas internacionais. Deveria ser do máximo interesse para
os EUA averiguar o que se passou. Infelizmente, sobre este ato terrorista pesa
o mais profundo silêncio.» Boaventura Sousa Santos, O Ocidente visto do mundo –
DN 5mar2023.
- «(…) Quem mais interesse tem na paz é quem mais perde com
a guerra, ou seja, a Ucrânia e a Europa. Inversamente, quem menos interesse tem
na paz é quem ganha mais com a guerra. Por sua vez, o que se perde e o que se
ganha vai muito para além do que é mais visível. Se a Ucrânia sangra no corpo,
a Europa sangra na alma. Uma anti-Europa nasce dentro da Europa. A Europa das
compras conjuntas de vacinas e medicamentos para garantir o bem-estar dos
cidadãos dá lugar à Europa das compras conjuntas de armas para causar a morte
de europeus ucranianos e russos (por agora) e aumentar o mal-estar de cidadãos
empobrecidos, tanto nas condições de vida material como na sanidade espiritual.
(...)» Boaventura Sousa Santos, A exigente construção da paz – Público
7mar2023.
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