quarta-feira, 8 de março de 2023

Bico calado

  • «(…) Durante a pandemia, os países do sul global insistiram em vão que as grandes empresas de produção de vacinas do norte global abrissem mão dos direitos de patente de modo a permitir a ampla e barata vacinação das suas populações. Não admira que os embaixadores da Europa e dos EUA não tenham agora qualquer credibilidade ou autoridade para exigir a estes países que apliquem sanções à Rússia. Tanto mais que, no auge da crise pandémica, a ajuda que receberam veio sobretudo da Rússia e da China. (...) A mesma falta de credibilidade e autoridade ocorre quando os países do sul global são intimados a mostrar respeito pela "ordem internacional baseada em regras". Durante décadas (senão séculos) o Ocidente impôs unilateralmente as suas regras, arrogou-se o privilégio de as declarar universais, ao mesmo tempo que se reservou o direito de as suspender e violar sempre que isso lhe conveio. Eis algumas perguntas que ocorrem a estes países. Quantos países foram invadidos sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, da Jugoslávia ao Iraque, da Líbia à Síria? Por que razão vivem enterrados em prisões ou em exílios todos os que ousam pôr a nu o abismo entre os princípios e as práticas, como ilustram os casos de Julian Assange e de Edward Snowden? Por que é que o ouro da Venezuela continua retido nos bancos do Reino Unido (e não só), tal como as reservas do Afeganistão continuam congeladas enquanto a população afegã morre de fome? Ninguém imagina na Europa o ridículo em que cai o Secretário-Geral da NATO quando é ouvido no sul global a invetivar a Rússia por usar o gaz e petróleo como arma de guerra, quando há tanto tempo muitos países vivem sob a arma de guerra do sistema financeiro global controlado pelos EUA (sanções, embargos, restrições). Finalmente, em 8 de fevereiro passado, o respeitado jornalista norte-americano Seymour Hersh revelou com informação concludente que foram os EUA quem, de facto, planeou, a partir de dezembro de 2021, a sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e Nord Stream 2. Se assim foi, estamos perante um crime hediondo que configura um ato de terrorismo de Estado que não só causa um irreparável desastre ambiental como cria um precedente imprevisível para todas as infraestruturas submarinas internacionais. Deveria ser do máximo interesse para os EUA averiguar o que se passou. Infelizmente, sobre este ato terrorista pesa o mais profundo silêncio.» Boaventura Sousa Santos, O Ocidente visto do mundoDN 5mar2023.
  • «(…) Quem mais interesse tem na paz é quem mais perde com a guerra, ou seja, a Ucrânia e a Europa. Inversamente, quem menos interesse tem na paz é quem ganha mais com a guerra. Por sua vez, o que se perde e o que se ganha vai muito para além do que é mais visível. Se a Ucrânia sangra no corpo, a Europa sangra na alma. Uma anti-Europa nasce dentro da Europa. A Europa das compras conjuntas de vacinas e medicamentos para garantir o bem-estar dos cidadãos dá lugar à Europa das compras conjuntas de armas para causar a morte de europeus ucranianos e russos (por agora) e aumentar o mal-estar de cidadãos empobrecidos, tanto nas condições de vida material como na sanidade espiritual. (...)» Boaventura Sousa Santos, A exigente construção da paz – Público 7mar2023.

Sem comentários: