segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Reflexão: Inundações e desabamentos no litoral de São Paulo – área de risco mapeada; ninguém respeitou o alerta

«O desastre ocorrido na noite de sábado de carnaval no litoral norte de São Paulo, atingindo principalmente a Vila do Sahy, ocupação popular junto à praia do Sahy em São Sebastião, traz vários ensinamentos, novos e antigos, os quais demandam reflexão para que possamos construir políticas públicas que viabilizem o aumento da segurança das nossas cidades em face das chuvas extremas.

Inicialmente é preciso pontuar que as chuvas foram de uma intensidade nunca registrada no País. A chuva acumulada em 24 horas atingiu 640 mm. Esse valor representa 6 vezes mais do que o patamar de chuvas a partir do qual se espera a ocorrência de escorregamentos em encostas.

Essa chuva toda caiu sobre a Serra do Mar, uma região geologicamente instável e sujeita naturalmente aos escorregamentos de encostas e os decorrentes fluxos de detritos que atingem a planície litorânea e as praias. A Geologia nos ensina que a Serra do Mar foi formada por uma movimentação tectônica que ocorreu dezenas de quilômetros a leste da sua posição atual. Em milhões de anos, as escarpas recuaram em direção ao planalto por meio de sucessivos escorregamentos. Só temos registros de desastres nos últimos 80/90 anos, quando a ocupação urbana avançou na base e nas escarpas da Serra. Na década de 1940 houve vários escorregamentos na Via Anchieta. Na década de 1950, desastres nos morros da Caneleira e Monte Serrat em Santos. Na década de 1960, destruição de Caraguatatuba e na Serra das Araras no Rio de Janeiro. Na década de 1970, escorregamentos durante a construção da Rodovia dos Imigrantes. Isso tudo em uma época que a ocupação urbana na Serra do Mar era ainda incipiente.

Nos últimos 40 anos a ocupação urbana avançou muito no litoral norte de São Paulo, e este avanço se deu da forma mais agressiva possível. As dezenas de praias existentes entre os centros urbanos de Bertioga e São Sebastião eram, até 1980, ocupadas por pequenas vilas caiçaras, que se mantinham prudentemente afastadas da base da serra. Com a construção da BR 101 entre Bertioga e São Sebastião, as comunidades caiçaras foram violentamente expulsas e as praias foram ocupadas por loteamentos fechados (figura urbanística ilegal na época) voltados para a implantação de casas de veraneio para população de altíssima renda. A população pobre, sejam os antigos caiçaras, sejam os que vieram trabalhar nas construções, teve que ocupar o pé da serra, região que é formada geologicamente pela deposição de solo e rocha dos escorregamentos das encostas. Área, portanto, suscetível de ser atingida pelos escorregamentos. Observa-se que nem mesmo a figura legal dos terrenos de Marinha, faixa de terreno de domínio da União com 33 metros de largura, situada imediatamente após o limite das praias e mangues, criada no século XIX justamente para proteger a costa brasileira, foi capaz de proteger os mais pobres do avanço do capital imobiliário.

Finalmente, cabe observar que os institutos de meteorologia previram, com pelo menos três dias de antecedência, que chuvas extremamente intensas atingiriam o litoral norte de São Paulo durante o fim de semana. (...) E no entanto, na 6a feira a tarde e no sábado de manhã milhares de pessoas desceram para as praias. Só em São Sebastião, município com menos de 100 mil habitantes, havia no sábado quase 500 mil pessoas. A Defesa Civil do Estado de São Paulo nada fez para impedir ou ao menos desincentivar isso. As prefeituras nada fizeram. As rádios, televisões e internet não desaconselharam o deslocamento dessa enorme população em direção ao ponto onde ocorreria o dilúvio. Na verdade, o alerta foi dado mas ninguém ligou. (...)

No sábado a noite, a chuva desabou na região. E as ocupações populares no pé da encosta, como a Vila Sahy, foram duramente atingidas por escorregamentos, blocos de rocha e avalanches de detritos, com destruição generalizada de moradias onde ao menos 40 pessoas pereceram. Ressalte-se que há anos essas áreas já tinham sido mapeadas como áreas de risco e, no entanto, nenhuma obra de prevenção, como muros de proteção dos canais naturais por onde fluem as avalanches, foi construída. (...)»

Celso Santos Carvalho, Outras Palavras.

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