«(...) Para
haver sustentabilidade, devem manter-se em equilíbrio diferentes vertentes:
economia, ambiente, aspeto social, cultura. (...) Para ver os efeitos
devastadores do turismo sem limites, temos muitos exemplos de grandes cidades e
zonas não urbanas que ficaram completamente transformadas, onde a massificação
turística levou a um crescimento económico desigual. (...) deveria haver um
trabalho de fundo que estabelecesse uma estratégia a longo prazo para o turismo
nos Açores, a qual deve definir claramente capacidades de carga e identificar aquilo
que nos faz únicos. Isto numa população que deveria ser incentivada a estar bem
informada, mas, infelizmente, tenta-se ter a população desinformada. (...) Neste
momento, vende-se o destino Açores como destino sustentável, mas não há
instrumentos que salvaguardem, de facto, isto. (...) É evidente que, sem
instrumentos reguladores, há via livre para que os grandes grupos façam o que
bem entendem. Isto, aliado aos fundos públicos que há para este tipo de
projetos, beneficia muito alguns, mas não a maioria da população, como
pretendem fazer-nos crer. (...)
No imaginário de muita gente, sustentabilidade é dar primazia ao aspeto ambiental, indo contra a economia. Mas não é disso que se trata. Para mantermos um setor económico saudável, este tem que ter em conta o ambiente (os recursos de que dispomos, o lixo que geramos, a poluição, etc.), as pessoas que vivem no lugar (se têm condições de trabalho dignas, se têm um lugar onde viver, como usam o espaço público, etc.), a cultura do local, a identidade... Não vale, em nome da economia que prometem salvadora de todos os males, começarmos por sacrificar algumas coisas essenciais, basilares para uma vida de qualidade, como o uso do espaço público (...) temos de ter um Programa de Ordenamento Turístico da Região Autónoma dos Açores (POTRAA) que coloque linhas vermelhas a definir o que nunca deve ser feito cá e que oriente o turismo para aquilo que queremos. Este processo deveria ser construído com as pessoas, estando estas no centro da decisão. São as pessoas que residem num lugar aquelas que devem decidir o que querem para a sua rua, para o bairro, para a freguesia, para a ilha. (...)
Em Santo Amaro
há muitas dúvidas sobre a construção de um novo empreendimento no Cabo das
Casas. Faz sentido numa freguesia como Santo Amaro onde residem 250 pessoas ter
500 camas? Não parece fazer sentido, pois não? Surgem aqui várias questões
que talvez não tenham sido respondidas nem analisadas globalmente: que
implicações tem viver numa freguesia que durante a maior parte do ano conta com
250 pessoas e, dois ou três meses por ano, tem 750? Consegue-se tratar dos
resíduos? Há água para todos? Quem vai trabalhar nesses empreendimentos e onde
vão ficar a viver esses trabalhadores? E na mercearia, como se gere o
funcionamento quando a procura triplica só numa pequena parte do ano? Há que
ver esta questão no seu conjunto e não só os milhões que vão ser investidos. É
o retorno que deve ser analisado, e este deve contemplar todos os aspetos:
sociais, ambientais, comunitários, culturais. (...)
Em Santo Amaro
já há o problema de uma oferta de camas desproporcionada. Existem, de facto,
problemas no preço da habitação. Os jovens que querem ficar não conseguem
comprar casa nem terreno porque os preços estão inflacionados. Mesmo que tenham
um terreno, os preços da construção subiram consideravelmente. No verão, há uma
enchente de pessoas que ocupam os lugares que os residentes usam durante o ano
todo. Os preços dos restaurantes são "para turista". E mais questões
há que se deveriam perguntar aos residentes, para percebermos ao certo quão
fundas são as consequências do que está a acontecer. (...)
Falta coragem
política para definir uma estratégia que ponha as pessoas no centro das
decisões. Dizem que, se a economia funcionar, estaremos todos bem. Mas o que
acontece, de facto, é que os investimentos dos grandes grupos beneficiam os
seus sócios em detrimento das condições de trabalho dignas dos trabalhadores,
em detrimento dos lugares que exploram... Se as pessoas fossem mais exigentes e
reivindicativas, talvez os políticos pensassem duas vezes como agir. É urgente,
portanto, já que não temos políticos que consigam ver o cenário a longo prazo e
trabalhar para o bem comum, que as pessoas se manifestem publicamente, para
exigirmos o que é nosso, defendermos este bem comum. (...)»
Blanca
Martín-Calero, entrevistada por David Borges ao Ilha Maior – 10fev2023
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