«(…) A guerra perpétua é uma componente central
da nova ordem internacional do pós-Guerra Fria, e não foi a Rússia nem Putin
que a inauguraram. É revelador, contudo, que haja que fazê-lo pelo ambiente de
intimidação que sofremos os que recordamos que Putin faz hoje na Ucrânia o que
Bush, Blair, Aznar&Durão fizeram no Iraque em 2003, levando à morte, só nos
primeiros três anos de guerra e ocupação, de 200 a 500 mil civis. Na Palestina,
ilegalmente ocupada por Israel desde 1967, milhares de civis foram mortos pelas
forças de ocupação (10 mil só desde 2000, segundo a B’Tselem), para já não
falar dos crimes de guerra perpetrados no Afeganistão ou na Líbia em
intervenções em algum momento legitimadas pela ONU. Em todos os casos as
vítimas civis tendem a ser descritas como “danos colaterais”, como lhes chamava
Jamie Shea, o porta-voz da NATO na guerra contra a Sérvia. Ninguém foi até hoje
condenado por toda esta mortandade; é para o evitar que os EUA rejeitam aderir
ao Tribunal Penal Internacional (TPI), acompanhados nessa atitude por Israel, a
Ucrânia ou a Rússia que, depois de ter aderido em 2000, o abandonou em 2016.
Putin poderá talvez contar com a mesma impunidade de Bush. A diferença é que os
EUA ou os seus aliados não sofreram sanção alguma.
Se a verdade é a primeira vítima de todas as guerras, a
memória é a segunda. Abordar esta guerra como se ela fosse a primeira ilegal da
história é continuar a invisibilizar o caráter sistemático da violação do
Direito Internacional pelo Ocidente sempre que, como a Rússia agora, não obtém
o apoio da ONU.
O paralelo é evidente com a guerra ilegal que a NATO, a
maior aliança militar do mundo, moveu em 1999 contra a isolada Sérvia, um país
mais pequeno que Portugal. Da mesma forma que Putin invocou o “genocídio” que
os ucranianos teriam praticado nas regiões russófonas, também a NATO invocou
100 mil mortos kosovares às mãos dos sérvios, número que afinal se reduziria a
três mil quando o TPI começou a investigar (Guardian, 18/8/2000). (…) Setenta e oito dias e noites consecutivos de
“bombardeamentos cirúrgicos” da NATO atingiram na Sérvia colunas de refugiados,
hospitais, escolas, órgãos de comunicação, a embaixada chinesa, fazendo cerca
de 500 mortos entre os civis (ver dados do Humanitarian Law Center). Na
sequência da guerra, e segundo o ACNUR, 200 mil sérvios tiveram de fugir do
Kosovo, até então uma província sérvia. Nenhum responsável político ou militar
da NATO foi sequer julgado por crimes de guerra. (…)
Levantaram-se entre nós muitas vozes contra o que se
descreveu como falta de clareza da condenação do PCP da invasão russa. É
curioso. E pedir contas ao Estado português por ter participado em guerras
ilegais como as da Sérvia e do Iraque? E exigir sanções já contra a ocupação
israelita da Palestina? E o julgamento de 30 anos de guerras ilegais?» Manuel
Loff, A guerra ilegal como sistema - Público, 1mar2022.
Sem comentários:
Enviar um comentário