quarta-feira, 2 de março de 2022

Bico calado

«(…) A guerra perpétua é uma componente central da nova ordem internacional do pós-Guerra Fria, e não foi a Rússia nem Putin que a inauguraram. É revelador, contudo, que haja que fazê-lo pelo ambiente de intimidação que sofremos os que recordamos que Putin faz hoje na Ucrânia o que Bush, Blair, Aznar&Durão fizeram no Iraque em 2003, levando à morte, só nos primeiros três anos de guerra e ocupação, de 200 a 500 mil civis. Na Palestina, ilegalmente ocupada por Israel desde 1967, milhares de civis foram mortos pelas forças de ocupação (10 mil só desde 2000, segundo a B’Tselem), para já não falar dos crimes de guerra perpetrados no Afeganistão ou na Líbia em intervenções em algum momento legitimadas pela ONU. Em todos os casos as vítimas civis tendem a ser descritas como “danos colaterais”, como lhes chamava Jamie Shea, o porta-voz da NATO na guerra contra a Sérvia. Ninguém foi até hoje condenado por toda esta mortandade; é para o evitar que os EUA rejeitam aderir ao Tribunal Penal Internacional (TPI), acompanhados nessa atitude por Israel, a Ucrânia ou a Rússia que, depois de ter aderido em 2000, o abandonou em 2016. Putin poderá talvez contar com a mesma impunidade de Bush. A diferença é que os EUA ou os seus aliados não sofreram sanção alguma.

Se a verdade é a primeira vítima de todas as guerras, a memória é a segunda. Abordar esta guerra como se ela fosse a primeira ilegal da história é continuar a invisibilizar o caráter sistemático da violação do Direito Internacional pelo Ocidente sempre que, como a Rússia agora, não obtém o apoio da ONU.

O paralelo é evidente com a guerra ilegal que a NATO, a maior aliança militar do mundo, moveu em 1999 contra a isolada Sérvia, um país mais pequeno que Portugal. Da mesma forma que Putin invocou o “genocídio” que os ucranianos teriam praticado nas regiões russófonas, também a NATO invocou 100 mil mortos kosovares às mãos dos sérvios, número que afinal se reduziria a três mil quando o TPI começou a investigar (Guardian, 18/8/2000). (…)  Setenta e oito dias e noites consecutivos de “bombardeamentos cirúrgicos” da NATO atingiram na Sérvia colunas de refugiados, hospitais, escolas, órgãos de comunicação, a embaixada chinesa, fazendo cerca de 500 mortos entre os civis (ver dados do Humanitarian Law Center). Na sequência da guerra, e segundo o ACNUR, 200 mil sérvios tiveram de fugir do Kosovo, até então uma província sérvia. Nenhum responsável político ou militar da NATO foi sequer julgado por crimes de guerra. (…)

Levantaram-se entre nós muitas vozes contra o que se descreveu como falta de clareza da condenação do PCP da invasão russa. É curioso. E pedir contas ao Estado português por ter participado em guerras ilegais como as da Sérvia e do Iraque? E exigir sanções já contra a ocupação israelita da Palestina? E o julgamento de 30 anos de guerras ilegais?» Manuel Loff, A guerra ilegal como sistema - Público, 1mar2022.

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