segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Bico calado

«(…) Os meios de comunicação ocidentais estão numa situação tão pobre e os seus jornalistas tão pouco qualificados, que é de esperar, mais do que nunca, um belicismo. As notícias falsas têm realmente tomado conta do domínio à medida que os artistinhas se acotovelam para se sobreporem uns aos outros nas manchetes mais recentes e, ao fazê-lo, agitam de facto o ambiente para que o sistema político fique viciado na cobertura mediática, de tal forma que tacitamente se aproxima da zona de guerra.

Se observarmos a cobertura da crise da Ucrânia feita pelos media britânicos, vemos que poucos jornalistas estão interessados em dar ao lado russo o direito de responder à narrativa de que Putin vai invadir a Ucrânia com base numa provocação encenada. O jornalismo desleixado é espantoso. O jornal Sun, sem dúvida o tablóide mais popular da Grã-Bretanha, que é talvez o pai fundador de notícias falsas dos anos 80, nunca deixa que a verdade se interponha no caminho de uma boa estória. Em 15 de fevereiro, declarou numa peça estrondosa que as tropas russas invadiriam a Ucrânia no dia seguinte com 200.000 soldados e uma barragem de mísseis – notícia atribuída, naturalmente, a relatórios dos serviços secretos norte-americanos. Quando os jornalistas são cúmplices de notícias de cuja veracidade duvidam, são pelo menos obrigados a contextualizar a estória. A menos, claro, que sejam simplesmente ignorantes e estejam apenas ansiosos por obter uma manchete sexy e alimentar a máquina de clickbait. Infelizmente, este último cenário é o que está a conduzir a maioria das agendas das redações dos media ocidentais, uma vez que os jornalistas de hoje não são mais do que estenógrafos sentados numa máquina e à espera de instruções.

O atual situação dos media ocidentais é tão pobre que a maioria dos jornalistas nas redações britânicas que escrevem sobre a crise da Ucrânia nem sequer fazem a mínima ideia das nuances da história e estão apenas preparados para escrever qualquer lixo que lhes seja entregue, sendo os relatórios dos serviços secretos dos EUA o combustível ideal para essas notícias que nem sequer são verificadas. Vimos exatamente o mesmo cenário que se desenrolou durante anos em Londres com jornalistas a cobrir a Síria, que se contentaram em apenas escrever relatórios factuais sobre os ataques com armas químicas de Assad alegadamente contra o seu próprio povo - baseados em nada mais do que dados fornecidos pelos governos ocidentais e notícias falsas geradas nos media - apenas para serem responsabilizados anos mais tarde por um escândalo na entidade reguladora de armas que denunciou essas reportagens como totalmente erradas e fabricadas por agências de informação ocidentais que as levaram a cabo, apoiadas por atores que forneceram filmagens de vídeo encenadas à BBC.

Vai acontecer o mesmo com a guerra da Ucrânia? Já está a acontecer. Putin foi demonizado a tal ponto que nem um dos chamados jornalistas da linha da frente acampados na Ucrânia deseja penetrar nas duas regiões controladas por "separatistas russos" e fazer algumas investigações segundo o velho estilo. É com frequência que vemos gigantes britânicos dos media, como a Sky, lançar alegados especialistas anti-russos para fazerem reportagens e interpretarem a situação sempre de modo a retratar a Rússia como o inimigo, porque isso é manejável e todos na redação podem trabalhar o material uma vez que não põe em causa o que o seu próprio governo está a injetar para o mundo do jornalismo de call center e que hoje conhecemos como ‘os grandes media de referência’.

Putin até tem sorte. (…) A ignorância do Ocidente em relação à crise da Ucrânia funciona bem nestes tempos de crise. Biden, que anunciou recentemente pela segunda vez que estava confiante que Putin estava prestes a invadir, começa a parecer ainda mais estúpido e desinformado do que nunca. E isso é fantástico.

Mas a verdade é que os líderes de terceira categoria que elegemos devido à falta de confiança no sistema estão a desiludir os eleitores ocidentais nas suas políticas e a lutar pelas suas vidas políticas. É por isso que é preciso falar de uma guerra na Ucrânia e provocar Putin para o fazer de facto, só para que eles possam encobrir os seus próprios fracassos e trabalhar para se promoverem como defensores dos valores ocidentais. Boris, Biden e Zelensky são uma anedota. Literalmente. O que os une é que poderiam usar uma invasão como uma divina distracção mediática e salvar-se a si próprios de serem expulsos nas urnas ou substituídos pelos seus próprios partidos.

Do mesmo modo, a UE encontra-se numa crise política nunca vista e quase de certeza que dirigirá os seus jornalistas servis em Bruxelas para que eliminem uma cópia cega mostrando como a União Europeia faz parte de uma crise humanitária e "lidera" os exércitos da UE que enviaram tropas para lá. Bruxelas poderá mesmo convencer alguns estados membros da UE a colocar nas armas dos seus soldados um emblema da UE para alimentar com mais mentiras a máquina mediática de notícias falsas. É claro que os jornalistas - como o do Financial Times que cobriu escreveu uma conferência em Bruxelas sobre as relações com os países africanos como sendo  uma manobra de relações públicas premiada para a própria UE - não estarão à procura de quaisquer factos irritantes que impeçam uma boa estória. Um deles, por exemplo, é de que a UE é a raiz desta crise por ter seduzido a Ucrânia aderir à NATO.

Uma guerra na Ucrânia pode apagar muitas más notícias em Bruxelas, como o crescimento patético da zona euro, como a Polónia e outros estados membros estão a emergir como candidatos ao Brexit, ou simplesmente como a UE está a ser ignorada em matéria de política externa e só pode realmente ser subserviente em relação aos EUA, como fez muito recentemente Josep Borrell em Washington. A popularidade de Biden também pode ser temporariamente suspensa da atual queda livre, se ele puder passar por estadista e completar frases inteiras enquanto gagueja para o seu teleponto e usa palavras caras ou se lembra da capital da Ucrânia. (…)»

Martin Jay, Give War a Chance? Fake News Is Already Making It Happen in Ukraine - Strategic Culture.

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