sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Bico calado

A cumplicidade dos media no escândalo das festas do nº 10 da Downing Street. O papel de vigilante dos media é uma ilusão. O último escândalo revela quão dependentes estão os jornalistas do governo. O atual furor cria a impressão de que a Grã-Bretanha é uma democracia vigorosa e funcional onde os media servem de cães de guarda do poder, obrigando o governo a prestar contas quando viola a sua palavra ou a lei, ou é exposto à hipocrisia.

Os media tentam transmitir a imagem de um primeiro-ministro em conflito a defender-se de repórteres tenazes, mas isso é uma ilusão. A Grã-Bretanha parece muito mais uma democracia gerida, onde as elites políticas e mediáticas trabalham em parceria para controlar o fluxo de informação e decidir o que fica escondido. O que nós, o público, vemos é em grande parte o que nos é permitido ou suposto ver. É muito pouco credível que nenhum dos jornalistas políticos mais poderosos da Grã-Bretanha não tivesse ouvido um pio sobre as festas realizadas durante o confinamento até as primeiras revelações aparecerem muitos meses depois - pouco antes do Natal. Das duas uma: ou as equipas de radiodifusão e imprensa britânicos são muito incompetentes, ou fecharam os olhos até que se tornou profissionalmente inconveniente continuar a fazê-lo. Qualquer uma das possibilidades é motivo de profunda preocupação.

Em muitos casos os jornalistas sabem coisas cuja publicação poderá colocar em risco a segurança e não ser do interesse público. Mas neste caso não era essa a questão. As revelações de que o governo tinha quebrado as suas próprias regras - regras concebidas para proteger a saúde pública - eram certamente do interesse público.

Os jornalistas sabem muito bem que têm que manter as suas fontes governamentais contentes de modo a continuarem a ter acesso a elas. Optar por situações potencialmente conflituosas é uma aposta de muito alto risco para qualquer jornalista político. Ele ou ela pode ser excluído de briefings e contactos com funcionários governamentais. Um correspondente político que perca todo o acesso ao governo torna-se de facto inútil para a sua organização noticiosa. Os editores políticos da BBC, ITV e Channel 4 estabelecem a agenda das notícias políticas do dia. Se perturbarem o primeiro-ministro, arriscam-se a perder o acesso às próprias pessoas que lhes fornecem a grande maioria das suas estórias. Isso torna mais fácil para um primeiro-ministro poderoso pô-los uns contra os outros, fazendo com que se preocupem que os seus rivais recebam grandes estórias enquanto eles ficam de fora. Isso seria o suicídio da sua  carreira - e governos como o de Johnson sabem-no. É por isso que, na prática, os correspondentes políticos tendem a trabalhar em manada. Ou entram todos juntos no ataque, como vemos agora, ou guardam o fogo coletivamente. Se um ou dois quebram as fileiras, e os restantes ficam do lado governo, os que assumem o risco podem sair do confronto profissionalmente esfrangalhados, com as suas carreiras arruinadas.

Mas há uma outra razão pela qual é provável que os repórteres políticos tenham mantido coletivamente a sua paz sobre as festas do confinamento durante tanto tempo. E isso aplica-se quer trabalhem para jornais de direita - a grande maioria deles - quer para aqueles poucos que se dizem liberais ou de esquerda suave. Os repórteres políticos não estão apenas profissionalmente próximos da política de Westminster, como mostra a porta giratória. A maioria é oriunda dos mesmos pequenos mundos sociais e culturais. Frequentaram as mesmas escolas e universidades de elite, e habitam os mesmos círculos sociais. De facto, isto pode mesmo ser considerado uma qualificação para o trabalho de repórter político. Johnson mostra à saciedade o problema da incestuosidade do jornalismo politico. Muitos correspondentes políticos de alto nível trabalharam ao seu lado ou para ele durante a sua própria carreira no jornalismo, o que precedeu a sua reinvenção como político. Eles perdoaram as suas decepções quando ele era jornalista, tal como têm perdoado as suas decepções como político. Ele era visto como um dos seus.

Johnson já está no poder há muito tempo - e tomou más decisões e fez inimigos suficientes - para que qualquer informador, ou ex-insider, o minasse com fugas sensacionais para os media famintos de rankings. Ele está a ser derrubado, tal como um touro é enfraquecido por farpas nas suas costas até não poder mais lutar. Se Johnson for derrubado, como cada vez mais parece provável, os media celebrarão o momento como um exemplo do seu papel vital em responsabilizar os poderosos, e da sua capacidade de dar vida nova às nossas instituições democráticas. Mas é muito mais provável que este episódio sirva apenas para esconder o fedor fétido de um sistema mediático que é tão corrupto como o sistema político.

Jonathan Cook, MEE.

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