terça-feira, 10 de novembro de 2020

Bico calado

«Milhões de pessoas em todo o mundo suspiraram de alívio com a derrota de Donald Trump e a vitória de Biden-Harris. O discurso de vitória de Joe Biden exalou um sentimento de otimismo no seu apelo a uma nova era de bipartidarismo e decência na política. Porém, é improvável que a decência prevaleça no domínio da política externa.

Como vice-presidente de Barack Obama, Biden cultivou um relacionamento próximo com o líder iraquiano Nouri al-Maliki, conhecido como o "Saddam xiita" pelas suas políticas sectárias que levaram ao crescimento do Estado Islâmico do Iraque e do Levante.

Biden também era muito próximo do presidente ucraniano Petro Porosehnko, instalado na sequência de um golpe apoiado pelos EUA em 2014 e dando início a uma guerra civil no leste da Ucrânia que deixou mais de 13.000 mortos. Biden defendeu ataques de drones e operações das Forças Especiais como alternativa ao destacamento pesado de tropas terrestres, que é a estratégia preferida da CIA.

Quando em 1972 concorreu para o Senado, o jovem Biden armou-se em pacifista, adversário da Guerra do Vietname e, em 1974, apoiou um projeto de lei que exigia a proibição de todas as operações secretas. Depois de Jimmy Carter ter tentado reduzir o pessoal da CIA em um terço, Biden apoiou aumentos nos orçamentos das secretas e da contra-espionagem e, em 1980, apoiou a nomeação para Diretor da CIA William Casey, um anticomunista ferrenho que aumentou as remessas de armas secretas para os mujahidin afegãos, os Contras da Nicarágua e as forças da UNITA de Jonas Savimbi em Angola.

Em 1999, Biden desempenhou um papel fundamental no lóbi do Senado pelo Plano Colômbia, um programa de US $ 1,3 mil milhões, que contribuiu para a guerra do exército colombiano contra as Fuerzas Armada Revolucionario da Colômbia (FARC), rotuladas de narcoguerrilhas. O senador Paul Wellstone (D-MN) havia promovido uma alternativa ao Plano Colômbia que teria transferido US $ 225 milhões de ajuda militar para programas de tratamento de drogas em casa. Biden defendeu que “temos estado nesta estrada desde sempre, desde sempre” e que “mais soldados e mais armas não derrotaram e não irão derrotar a fonte dos narcóticos ilegais”. Biden levantou-se imediatamente em defesa do Plano Colômbia no Senado, declarando que o Congresso “causaria um furacão” se “falhasse em contra-atacar os traficantes de drogas”. Uma década depois, a Colômbia continuava a ser a “líder mundial na produção de coca”, e foi devastada pela violência.

Durante a década de 1990, além da cruzada antidrogas, Biden assumiu a causa da expansão da OTAN na Europa de Leste, o que antagonizou desnecessariamente a Rússia e ajudou a ressuscitar a Guerra Fria.

Biden também defendeu o bombardeamento do Kosovo, cujo objetivo era minar o governo de Slobodan Milosovic da Sérvia e estabelecer uma base militar dos EUA, Camp Bondsteel. Em 2011, Biden caracterizou Hashim Thaci como o “George Washington” de Kosovo, embora Thaci tenha cancelado uma viagem a Washington em 2020 porque havia sido indiciado por crimes de guerra que incluíam responsabilidade criminal por mais de cem assassinatos.

A evolução de Biden de uma pomba para um falcão atingiu o seu trágico desfecho com o patrocínio de audiências no Senado que reuniram dissidentes anti-Saddam que queriam uma mudança de regime. Biden, através dessas audiências, ajudou a garantir apoio para a invasão do Iraque, que resultou em mais de um milhão de mortes.

A falta de princípios de Biden torna-se evidente quando examinamos a sua conduta na Ucrânia. Ele foi lá o homem mais importante do governo Obama no apoio ao regime de Petro Poroshenko, um oligarca corrupto instalado pelo golpe de estado de fevereiro de 2014 (conhecido como o “golpe de Maidan”) que derrubou o partido pró russo do presidente Viktor Yanukovych. Após o golpe, Biden fez várias visitas a Kiev e ajudou a formar uma coligação entre Poroshenko e Arseniy Yatsenyuk, um neoliberal favorecido pelo Departamento de Estado.

O filho rebelde de Biden, Hunter, foi colocado no conselho de administração de uma empresa de energia, a Burisma, cujos executivos estavam sendo investigados por evasão fiscal. Biden ajudou o filho a remover Viktor Shokin, o procurador-geral que investigava a Burisma, ameaçando reter um empréstimo de US $ 1 mil milhões do FMI.

Na altura, a administração Obama fornecia equipamento militar não letal à Ucrânia para uso na sua guerra nas províncias do Leste. O custo humano não dizia respeito ao futuro presidente eleito nem ao facto de o governo ucraniano ser apoiado por elementos neonazis que endeusavam Stephen Bandera, um colaborador nazi durante a Segunda Guerra Mundial.

Documentos da Casa Branca mostraram que Biden estabeleceu a maioria dos contatos telefónicos para o Iraque durante a sua vice-presidência. Do outro lado da linha estava Nouri al-Maliki, que atendia à necessidade do Departamento de Estado de um "homem forte xiita" que pudesse promover os interesses americanos. Quando protestos do tipo primavera árabe eclodiram contra al-Maliki, Biden e o secretário de Estado John Kerry trabalharam discretamente para ajudar a instalar Haidar al-Abadi, que estava empenhado em privatizar a economia do Iraque de acordo com os objetivos originais da invasão militar de 2003.

Durante as primárias do Partido Democrata, Biden elogiou o seu papel no desenvolvimento da Aliança para a Prosperidade na América Central, que promoveu projetos de infraestruturas em grande escala e programas de privatização que implicaram a venda de recursos nacionais para empresas multinacionais sediadas nos EUA.

A vitrine da Aliança, ou "Plano Biden", foi as Honduras, onde o governo Obama apoiou outro golpe de Estado que ajudou a alimentar a crise de migração para os EUA.

Todos esses casos esclarecem o vergonhoso histórico de política externa que Biden compilou como vice-presidente - um registo que fornece um bom barómetro para o que podemos esperar durante a sua presidência. Embora se venha a restaurar o apoio ao acordo climático de Paris, ao acordo nuclear com o Irão e à abertura de Obama em relação a Cuba, os fabricantes de armas estão confiantes de que não haverá grandes cortes nos gastos militares sob Biden.

O novo presidente eleito disse que não pode prometer uma retirada completa das tropas do Afeganistão, Iraque e Síria, e falou sobre a necessidade de reforçar a guerra cibernética e o arsenal de drones dos EUA. Biden também irá certamente intensificar a nova Guerra Fria com a Rússia, sustentar o comando militar africano, AFRICOM, que Trump ameaçava reduzir, e adotar uma abordagem chamada de "pegada leve" para a guerra, que ele favoreceu como vice-presidente. Numa entrevista recente, Biden defendeu maiores sanções e sublinhou que foi um dos primeiros a reconhecer o líder renegado de direita Juan Guaido como líder legítimo da Venezuela, enquanto pressionava o afastamento de Nicholas Maduro a quem chamou tirano.

Destaca-se também a hostilidade de Biden em relação à China e o desejo de "revigorar os Estados Unidos como uma potência do Pacífico, aumentando a presença naval dos EUA na Ásia-Pacífico e aprofundando os laços com países como Austrália, Indonésia, Japão e Coreia do Sul.

Os principais beneficiários desta política serão os fabricantes de armas, que doaram US $ 2,4 milhões a Biden durante a campanha eleitoral de 2020, em comparação com US $ 1,6 milhão a Trump. Um dos principais doadores de campanha de Biden, o Palmora Partners, um fundo de investimentos de milhares de milhões de dólares, tem mais de 260.000 ações da Raytheon, um fabricante e fornecedor de armas para a Arábia Saudita. Outro dos principais doadores de Biden, Jim Simons, que doou mais de $ 7 milhões, fundou a Renaissance Capital, que possui 1,2 milhão de ações da Raytheon no valor de mais de $ 75 milhões e 130.000 ações da Lockheed Martin no valor de $ 50 milhões.

Jeremy Kuzmarov, Cuidado com o falcão: o que esperar da administração Biden sobre política externa - CovertAction Magazine.

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