terça-feira, 13 de outubro de 2020

Reflexão – Estrumar a terra = devolver à terra aquilo que os animais não conseguiram digerir e que vai servir de alimento para as plantas

«Estamos no início do Outono. A maioria dos agricultores já terminou a colheita do milho. É tempo de preparar a terra para a sementeira das ervas de Inverno. Antes da sementeira, temos de colocar na terra os estrumes resultantes da pecuária, sobretudo estrume líquido (chorume), composto por fezes, urina dos animais e águas de lavagem dos estábulos. Estamos a devolver à terra aquilo que os animais não conseguiram digerir e que vai servir de alimento para as plantas.

Durante milhares de anos, foi esta a única prática possível para fertilizar a terra, além do recurso às algas (sargaço), só possivel no litoral. As plantas precisam de três nutrientes em grandes quantidades: azoto, fósforo e potássio. 78% da atmosfera é composta por azoto, mas só há pouco mais de um século, com o processo Haber-Bosch, foi possível captá-lo, produzir adubo de forma industrial e fazer agricultura em larga escala sem precisar dos animais para a fertilização.

Essa fertilização ocorre naturalmente e sem incómodos de maior quando os animais estão na pastagem, mas quando estão estabulados ou não tem acesso a todas as parcelas, como acontece em quase todas as vacarias do continente, a solução é transportar a comida (milho e erva) para a vacaria e levar o estrume ou chorume para o campo.

O problema, bem sabemos, é que cheira mal. Ainda não inventaram uma espécie de sabonete para suplementar a alimentação das vacas. Já experimentei um aditivo, bastante caro, que punha o chorume a cheirar a morango, mas cheira mal na mesma... E porque cheira mal, além de incomodar, algumas pessoas pensam que é tóxico e faz mal ao ambiente. De vez em quando até há pessoas que chamam a polícia.

A ironia é que se um agricultor aplicar adubo químico em excesso ninguém o vai incomodar. No âmbito do Green Deal e da estratégia “farm to fork”, a União europeia quer reduzir a utilização de adubos químicos em 30%. Partindo do princípio que não se estava a usar adubo em excesso (haverá casos, mas não será a regra), ficaremos ainda mais dependentes da adubação orgânica. Para conseguir comida para os animais e as pessoas precisamos de alimentar as plantas.

Com boa intenção, houve propostas de fazer ETAR (estações de tratamento de águas residuais) para o chorume das vacas. Por regra, não faz sentido. Uma ETAR tem gastos elevados em energia e manutenção. Fará sentido para quem faz pecuária sem terra (por exemplo, a suinicultura). A produção de leite está ligada à terra e 80% do alimento é produzido nos terrenos da empresa agrícola ou de vizinhos. O importante é fazer um correto “balanço de nutrientes”. Contabilizar os efluentes que se produzem, analisar, fazer as contas e ver se chega ou sobra para colocar na terra. Se houver em excesso, procurar terrenos próximos de agricultores que já não tenham animais e que irão agradecer esse “alimento”.

Muito importante é fazer o espalhamento do chorume a baixa pressão, o mais junto ao solo possivel e incorporar imediatamente após o espalhamento, por exemplo com a grade de discos. Reduz-se a libertação do mau cheiro e evitam-se as perdas de azoto por evaporação. Já experimentámos cisternas com sistemas para injetar no solo, mas exigem um esforço de tração enorme de tratores que não temos, além do espaço que ocupam atrás da cisterna. Dificilmente funciona nos nossos terrenos de minifúndio e caminhos estreitos.

Por muitos cuidados que a gente tenha, é impossível evitar algum mau cheiro. Acontece o mesmo com toda a gente quando vai à casa de banho. No caso do chorume nos campos, havendo armazenamento, são apenas dois dias por ano, na sementeira de outono e da primavera. É o preço a pagar pelo alimento que produzimos, pela paisagem verde, pelo oxigénio que se liberta e pelos incêndios que mantemos longe.»

Carlos Neves Agricultor, FB.


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