sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Bico calado

«Estou a trabalhar numa reportagem, para uma revista alemã, sobre os milhares de pessoas que no ano 2018 vivem às portas da capital portuguesa nas mesmas condições em que se vivia nos bairros de lata há meio século.

Muitos lisboetas estão a ir para Almada, Trafaria e Caparica em busca de rendas comportáveis, mas muitos mais vivem há décadas em frente a Lisboa como se Portugal fosse um país do terceiro mundo. Nos bairros onde estive vi crianças abandonadas nas ruas durante todo o dia, enquanto as mães e os pais vão trabalhar em limpezas e obras. Jovens adultos para quem a escolha muitas vezes é entre o esforço para conseguir trabalho, precário e mal pago, ou a pequena delinquência.

O aglomerado de casebres e barracas na fotografia aérea é o Torrão Dois, ou 'Segundo Torrão', na margem sul do Tejo. Do outro lado do rio, mesmo em frente, vê-se a sede da nova-rica Fundação EDP, o elitista Centro Cultural de Belém, os magníficos Jerónimos, empreendimentos de luxo e uma das sedes do poder político em Portugal, o palácio da Presidência da República. A concentração de miséria neste e noutros bairros de Almada é assustadora. O que escrever? O que dizer às pessoas que perguntam, se um dia irão conseguir uma casa?

"Aqui não há crise nem fim da crise. Aqui só há miséria. Diga lá isso ao presidente da câmara. Nem dinheiro para comprar os remédios tenho", diz-me uma mãe que esta manhã não foi apanhar o barco à Trafaria, para ir trabalhar numa casa no Restelo, porque a filha está com febre, deitada num colchão sem lençóis, num quarto em tijolo cru com uma janela partida e uma vista deslumbrante para o azul do Tejo. Fica, a pedido da jovem mãe, entregue o recado a Inês de Medeiros.» 

Miguel Szymanski, Aqui não há crise nem fim da crise. Aqui só há misériaFB.


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