«(…) é claro que aquilo a que chamamos pós-pandemia é, de facto, o início de um longo período depandemia intermitente. Um período que nem sequer termina com a distribuição generalizada da vacina, uma vez que, a continuar o actual modelo de desenvolvimento e de consumo, a actual matriz energética, em suma, o actual padrão civilizacional, outras pandemias virão, e certamente mais letais. (…) Sabemos de vários Estados asiáticos que obtiveram bons resultados confiando na disciplina dos cidadãos. Por que será que no Ocidente temos de aplicar multas para que as pessoas se protejam? Não estará aqui a condenação dos nossos sistemas educativos, uma educação centrada na falácia do empreendedorismo, que não educa para a solidariedade e para a cooperação, para os bens comuns e para tudo o mais que compõe o nosso destino comum?
(…) Durante o confinamento, se os números aumentavam, a culpa era do vírus e se os números diminuíam, o crédito era do Estado. A partir de agora, qualquer resultado negativo será atribuído à actuação do Estado, enquanto qualquer resultado positivo será atribuído à disciplina dos cidadãos. A
dimensão do dissenso vai depender da exploração dos resultados negativos por parte de uma ultradireita troikificada que existe em Portugal e a que a RTP pública intrigantemente continua a dar amplo espaço.
(…) Durante a pandemia, gerou-se um consenso enorme sobre a valorização do Serviço Nacional de Saúde. Esse consenso assentou não só no que o SNS fez, mas também no modo como o sistema privado se comportou. Não podendo beneficiar indevidamente com a crise, o sistema privado retirou-se para a posição parasitária à espera que a tormenta passasse e o sistema de saúde lhe voltasse a cair nas mãos. Por incrível que pareça, é isto o que vai suceder quando a ministra da Saúde anuncia o recurso ao sistema privado para diminuir as listas de espera. Ou seja, voltamos ao passado, disfarçado de benefício a curto prazo para os cidadãos. Assim nos despreparamos activamente para a próxima pandemia. O regresso do velho também pode estar presente no modo como se pretende lidar com a TAP, uma intervenção do Estado que foi feita (e bem) à beira do abismo, mas que agora se podia corrigir desde que a oportunidade não se desperdiçasse.
Um outro sinal perturbador é o da permanência da lógica dos subsídios e incentivos dados às indústrias e serviços que alimentam o actual modelo de consumo de massas assente no transporte individual, na energia fóssil, na agricultura industrial e nos imensos centros comerciais que não tardarão a ser considerados zonas de alto risco se, entretanto, não forem redimensionados. Este modelo está intimamente ligado às mudanças climáticas e à iminente catástrofe ecológica que, segundo o último relatório da Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre a Biodiversidade e os Serviços Ecológicos (IPBES, no acrónimo do nome em inglês), estão directamente relacionados com a recorrência das pandemias. Ou seja, subsidiar o actual modelo produtivo e de consumo significa subsidiar a ocorrência de novas pandemias. Para se não desperdiçarem as oportunidades que a pandemia criou, seria necessário que o tal consenso político fosse sujeito à condição que a experiência recente nos ensinou: se a esquerda fizer a política da direita, os cidadãos concluirão que a direita a faz melhor.»
Boaventura Sousa Santos, in Para o futuro comeaçar – Público 11mai2020.
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