segunda-feira, 24 de junho de 2019

Reflexão - Qual é a melhor maneira de destruir uma cidade?


«Qual é a melhor maneira de destruir uma cidade? Inundá-la de carros. Investigações de 50 anos mostram que o tráfego intenso destrói comunidades, perturba a vida social e esmaga as culturas locais. O ruído abafa a conversa e leva as pessoas para dentro de casa. A poluição torna as ruas inóspitas. Os carros ocupam o espaço que poderia ser usado para as crianças brincarem, para os adultos conviverem e para projetos locais se desenvolverem.
A vida na rua é vista como um empecilho para o tráfego. Em todo o mundo, a rua foi libertada para os carros. Barraquinhas, vendedores ambulantes, jogos de futebol e cricket, idosos jogando dominó, xadrez ou petanca: todos têm de ceder espaço ao carro. Tanta é a terra necessária para conduzir e estacionar que resta pouco para a vida humana. Em cidades como Barcelona, que restringem o tráfego, os carros usam cerca de 25% da área urbana. Em cidades como Houston, eles usam 60%. O carro devora o espaço público que poderia ser parques, ciclovias, mercados e recreios.

Os novos anúncios da Land Rover para o seu Range Rover Evoque criam a impressão oposta: a de que este ridículo comilão de gasolina contribui para a cultura urbana. O Evoque é comercializado como “o Range Rover para a cidade”, que soa como uma contradição: os SUVs como este foram originalmente projetados para estradas de terra batida. Mas agora, segundo a agência por trás desta campanha revoltante, somos convidados a usá-lo para “explorar a nossa cidade” e criar as nossas próprias “aventuras urbanas”.
Um dos anúncios apresenta a supermodelo Adwoa Aboah conbduzindo em Brixton, olhando para a interessante vida de rua como se estivesse num safári humano e falando sobre a sua "incrível alma e ritmo ... as pessoas aqui são reais". Dá a impressão de que o carro está a passar por ruas do mercado, onde o tráfego é proibido. Porquê? Porque estes são os lugares com mais “alma e ritmo surpreendentes”.
Ela também conduz pela Brixton Road, uma das ruas mais poluídas de Londres. Todos os modelos Evoque produzem mais emissões de óxido de nitrogénio do que a média dos carros novos (e emissões de CO2 muito mais altas). A única contribuição do Evoque para a vida de rua de Brixton provavelmente consistirá em acelerar as mortes de algumas das pessoas "reais" por que passa.
Atualmente a poluição do ar mata mais pessoas do que o tabaco. Em toda a Europa, estima-se que causará a morte prematura de 800.000 pessoas por ano. Todas as semanas, os carros aqui matam muito mais pessoas do que o número total de vítimas do desastre de Chernobyl. A poluição do ar danifica corações e pulmões, causa uma ampla gama de cancros e prejudica a saúde dos fetos. Pode reduzir radicalmente a inteligência, como resultado do estresse oxidativo e da neurodegeneração. E agora vem a Land Rover, não apenas promovendo um SUV poluente como um carro urbano, mas sugerindo que ele seja usado para diversão: para se arrastar pelas ruas congestionadas e olhar embasbacado para o jardim zoológico humano.
Os SUVs estão máquinas mortíferas: porque são mais altos e mais pesados, é mais provável você morrer se for atingido por um do que se for atingido por um carro normal. A moda dos SUVs é uma das duas principais razões para o aumento das mortes de peões na estrada (a outra é os motoristas que usam telemóveis). Serão especialmente perigosos se você usá-los para conduções de caça humana, em vez de observar a estrada.
Outro dos anúncios incita os motoristas a “partirem para uma aventura. Descubra Edimburgo, uma das cidades mais visionárias do Reino Unido ”. Uma cidade voltada para o futuro deveria proibir esses carros nas suas ruas. A agência de publicidade da Land Rover promete lançar essa campanha em todo o mundo, nomeando cidades da África do Sul, China e Colômbia. Onde quer que as culturas urbanas interessantes persistam, um Range Rover passará por elas.
Estes anúncios são horrivelmente reminiscentes dos passeios comerciais de jipe pelas favelas do Rio de Janeiro. Os moradores dizem que esses passeios fazem com que se sintam humilhados e coisificados. Os turistas sentam-se atrás das janelas do carro, em segurança e isolados dos nativos, filmando a pobreza exótica enquanto são conduzidos pelas casas das pessoas.
Lembram-se também os anúncios horrorosos da Volkswagen o ano passado, que perguntavam: “Quer aumentar a sua credibilidade à porta da escola? O nosso Tiguan foi votado um dos carros mais fixes para levar os meninos à escola”. Envenenar as crianças levando-as à escola num SUV monstro é, na minha opinião, a coisa menos fixe que um pai pode fazer.
Estes anúncios ajudam a normalizar os comportamentos antissociais e e até mesmo patológicos. E é precisamente quando precisamos de reduzir drasticamente o uso de carros, para bem da saúde humana e da sobrevivência do planeta (o mayor de Londres, Sadiq Khan, acaba de anunciar um dia livre de carros em Setembro para sublinhar esta necessidade), que os fabricantes tentam arrastar-nos para o século 20. 
No seu livro Unlocking Sustainable Cities, Paul Chatterton defende que o control do automóvel é o passo mais importante para criar cidades amigáveis e vivas. Ele dá como exemplo o trabalho de arquitetos ocmo Jan Gehl, que procura reconquistar o espaço capturado pelos carros de modo a permitir o florecimento da vida entre os edifícios.
Nemo s carros elétricos nemo s carros sem conductor resolverão o problema. Ambos ocupam o mesmo espaço que os veículos a combustíveis fósseis. Os carros elétricos já estão a despoletar uma série de desastres ambientais devido À corrida ao lítio, ao cobalto e ao níquel necessários para fazer as suas baterias. Os carros sem condutor vão provavelmente exacerbar o congestionamento e acelerar a crise climática devido às necessidades energéticas exigidas pelos centros de dados para os controlarem.
Faz muito mais sentido construir uma rede de tráfego elétrico. Mas os que lucram com o trânsito automóvel urbano têm feito tudo para boicotar esquemas dese tipo. Nos EUA, o Americans for Prosperity, um grupo fundado e financiados pelos irmãos Koch, criou campanhas para combater projetos de autocarros e metros de superfície, conseguindo suspender sistemas de transportes púbicos em vários estados. Muita da fortuna dos Koch vem da refinação do petróleo e da produção de asfalto.
Um outro anúncio em preparação para o Evoque, para Chicago, define o conflito de modo grosseiro. Segundo a Land Rover, “O Evoque vai subir literalmente pela coberta de uma movimentada plataforma de transportes.” O tema do safari continua: o novo Land Rover exibe-se no topo do sistemapúblico de transportes como um caçador com o seu pé em cima de um leão abatido.
Em A Tale of Two Cities, Charles Dickens escreveu acerca do “hábito selvagem de conduzir dos ricos”.  Quando os aristocratas conduziam os seus carros desgovernados pelas ruas de Paris toda a gente tinha que saltar para fora do caminho ou morrer. Dickens sugeriu que esta prática bárbara foi uma das muitas atrocidades que ajudaram a catalizar a Revolução Francesa. Hoje, quando os carros rasgam um caminho nas nossas vidas, precisamos de uma nova revolta contra a condução selvage. É tempo de devolver as ruas às pessoas.»

George Monbiot, in The Guardian 20jun2019.

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