segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Reflexão - «As "limpezas" florestais em curso podem ser um mal maior do que os incêndios do Verão passado»

Imagem colhida aqui.

PIOR QUE OS INCÊNDIOS DO VERÃO PASSADO PODE SER, ESTE INVERNO, A DESIGNADA "GESTÃO DE COMBUSTÍVEL"

Exceção feita à trágica perda de vidas humanas, que ocorreu essencialmente em estradas marginadas por povoamentos monoespecíficos de pinheiros e/ou eucaliptos, as "limpezas" florestais em curso podem ser um mal maior do que os incêndios do Verão passado.

Em 2003, em entrevista à revista Visão, o Arq. Gonçalo Ribeiro Teles afirmava: "A limpeza da floresta é um mito. O que se limpa na floresta, a matéria orgânica? E o que se faz à matéria orgânica, deita-se fora, queima-se? Dantes era com essa matéria que se ia mantendo a agricultura em boas condições e melhorando a qualidade dos solos. E, ao mesmo tempo, era mantida a quantidade suficiente na mata para que houvesse uma maior capacidade de retenção da água. Com a limpeza exaustiva transformámos a mata num espelho e a água corre mais velozmente e menos se retém na mata, portanto mais seco fica o ambiente."

Insensível (ou ignorante?) o Decreto-Lei 124/2006, com as sucessivas alterações, nomeadamente a publicada ontem em Diário da República, encara a floresta não como um ecossistema prestador de serviços, mas como um malvado "...terreno, com área maior ou igual a 0,5 hectares e largura maior ou igual a 20 metros, onde se verifica a presença de árvores florestais [pasme-se] que tenham atingido, ou com capacidade para atingir, uma altura superior a 5 metros e grau de coberto maior ou igual a 10%".

O citado decreto-lei (Sistema Nacional de defesa da floresta contra incêndios) considera a árvore - todas as árvores - um perigoso pirómano que não passa de uma mera "Planta perene lenhosa com um tronco principal, ou em caso de talhadias com diversas varas, com uma copa sensivelmente definida." (in 6º Inventário Florestal, ICNF 2013), e particularmente perigosas se atingirem 8 m, pelo que devem estar desramadas até aos 4 m (DL 10/2018).

Mas como todos os criminosos, quando agrupados são mais perigosos, pelo que as árvores, na periferia de edificações, não podem ter a copa a menos de 4 m umas das outras (para não poderem conspirar...) e, sendo pinheiros ou eucaliptos, a menos de 10 m, dada a sua particular perigosidade. 

Já o estrato arbustivo quer o DL 10/2018 que seja baixo - no máximo 50 cm - e o estrato subarbustivo terá de ser rasteirinho, cortado regularmente, já se vê, com máquina de cortar relva, para não ultrapassar o 20 cm; lá se vão as urzes, os tojos, as gilbardeiras, as silvas, as madressilvas, os narcisos, os fetos, as toutinegras, os piscos, as borboletas, em suma, a biodiversidade.

Assim, acham alguns, não chega o fogo aos pinheiros nem aos eucaliptos, fogo que, em 26% dos casos investigados em 2016 se deve a comportamentos negligentes, com destaque para as queimadas.

Nos estritos termos desta legislação, os freixos ao longo da EN 206-1, entre Marvão e Castelo de Vide, os carvalhos e os estratos arbustivo e herbáceo-subarbustivo da Mata de Albergaria, no Parque Nacional da Peneda-Gerês, ou a cerca do Buçaco, só para dar alguns exemplos, são locais ameaçados.

Claro que há exceções, como sempre há em todas as leis: mas essas exceções terão, contudo, que ser aprovadas pela comissão municipal de defesa da floresta, composta pelo respetivo presidente da câmara municipal, até cinco representantes das freguesias do concelho, um representante do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, o coordenador municipal de proteção civil, um representante da GNR e outro da PSP, um representante das organizações de produtores florestais, um representante das Infraestruturas de Portugal e outro do Instituto de Mobilidade e Transportes, dois representantes dos concessionários da distribuição e transporte de energia elétrica, outras entidades e personalidades a convite do presidente da comissão e... nenhum representante das associações de defesa do ambiente nem do setor do turismo!

Como se vê, um órgão muito capacitado, técnica e cientificamente, para deliberar sobre a preservação da verdadeira floresta, da biodiversidade e da paisagem.

Esta legislação foi, claramente, feita nos gabinetes, por alguém que nunca pisou verdadeira floresta, fosse pelo medo dos incêndios, fosse porque o mato se mete nas botas, fosse por causa dos lobos, ou vá-se lá saber porquê!

Não é, assim, que se protege a floresta (e as pessoas) dos incêndios: protege-se com uma adequada gestão do território. O já citado Decreto-Lei 124/2006 refere no seu art.º 16º: "Fora das áreas edificadas consolidadas não é permitida a construção de novos edifícios nas áreas classificadas na cartografia de perigosidade de incêndio rural definida no PMDFCI [Plano Municipal de Defesa da Floresta contra Incêndios; em janeiro de 2018 havia 57 municípios ainda sem PMDFCI aprovado!] como de alta e muito alta perigosidade."; e quantas casas, fábricas e armazéns se construíram nessas áreas após 2006?

Mais determina que "Nas ações de arborização, de rearborização e de reconversão florestal, os povoamentos monoespecíficos e equiénios não poderão ter uma superfície contínua superior a 50 ha, devendo ser compartimentados..."; quantas plantações de pinheiros e eucaliptos com mais de 50 ha se fizeram e mantiveram após 2006, sem respeitarem o previsto no DL 124/2006?

E ainda diz mais: "Nas ações de arborização, de rearborização e de reconversão florestal, sempre que se verifiquem no terreno linhas de água deve dar-se prioridade à manutenção ou recuperação de galerias ripícolas..."; quantos amieiros, freixos e salgueiros se cortaram, e quantos não se plantaram desde 2006?

Como escrevi em 17/07/2017, na manhã seguinte ao trágico incêndio de Pedrogão Grande, a falta de prevenção de fogos florestais vem de há várias décadas e tem muitos responsáveis, nomeadamente os que em 2006 implodiram os Serviços Florestais e acabaram com os guardas-florestais (DL 22/2006), curiosamente no mesmo ano em que o DL 124/2006 criou o "Sistema Nacional de defesa da floresta contra incêndios", que temos vindo a comentar.

Com a acéfala "gestão de combustível" que esta legislação determina, e com a difícil interpretação da mesma, estão a ser arrasados milhares de hectares de matos que protegiam os solos da erosão, abrindo-se caminho à entrada de espécies oportunistas e invasoras como acácias, erva-das-pampas e outras; vai-se dar uma machadada na biodiversidade, diretamente, destruindo milhares e milhares de ninhos de aves feitos em matagais e, indiretamente, acabando com os seus locais de abrigo e alimentação, como os tão importantes silvados.

E depois queixam-se (notícia de hoje) que a cidade de Viseu foi invadida por javalis!

Em simultâneo espalha-se a ideia de que há que cortar e podar todas as árvores numa faixa de 50 m em torno das habitações, o que não corresponde à letra da lei que exclui parques, jardins urbanos, pomares de fruto e olivais, e considera "urbano" um "Terreno, com mais de 0,5 ha e 20 m de largura, edificado com construções efetuadas pelo Homem (prédios, casas, armazéns, estradas, pavimentos artificiais, etc.), integradas em grandes ou pequenos aglomerados urbanos ou isoladamente. Pode incluir terrenos ocupados com vegetação cujo uso não se considera florestal ou agrícola." (in 6º Inventário Florestal, ICNF 2013).

As arborizações com fim ornamental ou de fomento da biodiversidade (vegetação cujo uso não se considera florestal ou agrícola) estão, portanto, excluídas e as suas árvores podem ser poupadas às motosserras e às podas descaracterizadoras; de resto, como se desrama até 4 m do solo um salgueiro-chorão ou um sobreiro?

Não escrevo isto para defender o meu quintal, que não tenho, mas sim para apoiar as muitas pessoas que, ao longo de anos, fizeram das suas propriedades verdadeiros arboretos e, agora, temem a obrigatoriedade de abate, que realmente não existe. 

É que abater e podar num raio de 50 m de construções significa, no mínimo, intervir em 7.800 m2, quase um hectare, o que, multiplicado por dezenas de milhar de casos, daria uma redução de dezenas de milhar de hectares de área vegetalizada, com a consequente exposição do solo à erosão e diminuição da infiltração de água.

Com isto não quero dizer que não se façam algumas limpezas de prevenção e, em especial, que se abram zonas de descontinuidade florestal e faixas de segurança paralelas às vias de comunicação; mas com bom senso.

Ordene-se o território, valorizem-se os matagais, crie-se atividade económica geradora de emprego no interior do território, privilegie-se a floresta mista e de uso múltiplo, faça-se cumprir a legislação urbanística e deixem-se as árvores em paz, em nome dos muitos serviços que nos prestam!

Nuno Gomes Oliveira, FB 15fev2018.

1 comentário:

OLima disse...

Ora be,, 4 dias depois, o Pùblico «Não, não é para cortar todas as árvores à volta das casas»
https://www.publico.pt/2018/02/23/sociedade/noticia/nao-nao-e-para-cortar-todas-as-arvores-a-volta-da-sua-casa-1804161