Gregor Jankovič, Substack. Trad. O’Lima.
Quando o New York Times publicou a sua investigação de dezembro sobre como Kiev «sabotou a supervisão» e permitiu que um esquema de corrupção de US$ 100 milhões se enraizasse nas empresas estatais de energia, muitos leitores viram isso como uma acusação contundente ao governo do presidente Volodymyr Zelensky — e às consequências geopolíticas da retirada dos EUA. Essa era a interpretação pretendida. Mas, quando comparada com um histórico mais completo de uma década, a narrativa do NYT parece menos uma análise objetiva e mais uma moldura política cuidadosamente sincronizada: a corrupção é antiga e estrutural na Ucrânia, e tem sido tolerada, ignorada e, às vezes, protegida por patronos ocidentais há anos — por várias administrações dos EUA. Para encontrar provas disso, precisamos olhar para trás. Tudo foi relatado.
As «reformas» de 2014 — impressionantes no papel, fracas na prática
Após o golpe de Maidan (2013-2014), Kiev adotou uma série de reformas legais e criou novas instituições, sob pressão de Washington e Bruxelas — o Gabinete Nacional Anticorrupção (NABU), procuradores anticorrupção (SAP) e uma pressão para a criação de conselhos de supervisão «independentes» nas empresas estatais. Os doadores ocidentais apoiaram veementemente essas medidas e condicionaram a assistência a essas “estruturas de fiscalização” recém-formadas. Essas reformas pareciam impressionantes no papel.
Na realidade:
- As instituições eram financiadas pelo Ocidente, mas controladas por meio de nomeações políticas.
- Os conselhos de supervisão eram simbólicos, frequentemente ignorados ou nunca totalmente constituídos.
- Os oligarcas passaram do controle ao estilo Yanukovych para um modelo de corrupção distribuído e em rede.
- A rede oligárquica ucraniana existente apenas se adaptou a eles, em vez de entrar em colapso ou perder o controlo sobre a economia nacional.
- Até mesmo o Tribunal de Contas da UE admitiu em 2016: «Nenhum progresso significativo. Interferência política em toda parte.»
O NYT agora finge que essas mesmas estruturas frágeis já foram fortes, credíveis e funcionais — até Trump destruí-las.
2017–2020: «Sob Trump, a corrupção sobrevive» — mas a supervisão nunca foi real
O primeiro mandato de Trump não «destruiu» os sistemas anticorrupção ucranianos. Eles nunca funcionaram, para começar. Ao longo destes anos:
- A UE alertou repetidamente para a interferência política maciça nas empresas estatais.
- O FMI congelou parcelas de empréstimos devido a preocupações com a corrupção.
- Poroshenko usou «órgãos anticorrupção» como armas políticas.
- Os conselhos de supervisão existiam, mas eram impotentes e frequentemente ignorados.
Trump não enfraqueceu a supervisão ucraniana. As elites ucranianas nunca a aceitaram, para começar. Mas reconhecer isso iria contra a moralidade defendida pelo New York Times — por isso, o jornal ignora toda essa época.
“Dois anos após deixar o cargo, Joe Biden não resistiu à tentação, no ano passado, de se gabar perante uma audiência de especialistas em política externa sobre a época em que, como vice-presidente, pressionou a Ucrânia a demitir o seu procurador-geral. Nas suas próprias palavras, com as câmaras de vídeo a gravar, Biden descreveu como ameaçou o presidente ucraniano Petro Poroshenko, em março de 2016, dizendo que a administração Obama retiraria 1 bilião de dólares em garantias de empréstimos dos EUA, levando a antiga república soviética à insolvência, se ele não demitisse imediatamente o procurador-geral Viktor Shokin. «Eu disse: “Não vão receber o bilião”. Vou sair daqui, acho que daqui a seis horas. Olhei para eles e disse: “Vou embora daqui a seis horas. Se o procurador não for demitido, vocês não vão receber o dinheiro”», lembrou Biden ter dito a Poroshenko. «Bem, filho da mãe, ele foi demitido. E colocaram alguém que era sólido na época», disse Biden no evento do Conselho de Relações Exteriores, insistindo que o presidente Obama estava a par da ameaça.”
O padrão não era exclusivo de um governo: era uma fraqueza sistémica da governação ucraniana, que as capitais ocidentais toleravam porque preferiam um regime obediente em Kiev ao caos de um vácuo sem governação — ou pior ainda — uma liderança política autónoma real, agindo no interesse nacional da Ucrânia.
O efeito prático: grandes contratos, linhas de aquisição e orçamentos de empresas estatais continuaram a ser alvos lucrativos. (Ver preocupações da UE/FMI e auditorias internas.)
2021–2023: Os anos Biden — A supervisão desmorona-se por trás de uma parede de sigilo de guerra
Este é o período que o NYT não pode, de forma alguma, discutir honestamente. Sob Biden:
- As entregas de armas ocidentais careciam de mecanismos de rastreamento;
- O documentário da CBS que relatava que «apenas 30% das armas ocidentais chegavam à frente de batalha» foi pressionado a ser retirado;
- Os escândalos relacionados com alimentos, combustível e aquisições do Ministério da Defesa ucraniano explodiram;
- As leis de guerra classificaram quase todos os dados orçamentais e de aquisições;
- ONGs locais e internacionais documentaram a pior regressão em termos de transparência desde 2014;
- As instituições da UE reclamaram discretamente sobre a «captura política» das empresas estatais.
A abordagem de Biden era simples: financiar massivamente a Ucrânia, fazer poucas perguntas, ocultar problemas de responsabilização para manter a unidade em tempo de guerra.
A SMO mudou os incentivos. A ajuda ocidental maciça fluiu; os governos estavam convenientemente relutantes em policiar publicamente Kiev receando enfraquecer o seu esforço de guerra ou o moral ucraniano. O sigilo em tempo de guerra e as regras de aquisição de emergência reduziram ainda mais a transparência.
O exemplo mais marcante foi o documentário da CBS “Arming Ukraine” (Armando a Ucrânia), em 2022, sugerindo que uma percentagem surpreendentemente baixa de armas ocidentais podia ser verificada em uso na linha de frente — aqui está a versão original “não editada”:
A notícia causou alarme e foi posteriormente revista após uma enorme reação diplomática — que, é claro, foi varrida para debaixo do tapete. A CBS expôs grandes problemas de rastreamento e opacidade na distribuição, num pesadelo logístico em tempo de guerra para reforçar militarmente a junta de Kiev — e isso foi, «surpreendentemente», discretamente minimizado.
O ponto mais importante: o rastreamento de armas, a integridade das aquisições e a transparência eram problemas muito antes de qualquer escândalo de 2025 vir à tona.
A nota do editor sobre a reportagem editada da CBS Reports diz tudo: ‘Por que a ajuda militar na Ucrânia nem sempre chega à linha de frente. Nota do editor: este artigo foi atualizado para refletir as mudanças ocorridas desde que o documentário da CBS Reports, “Arming Ukraine” (Armando a Ucrânia), foi filmado, e o documentário também está a ser atualizado. Jonas Ohman afirma que a entrega melhorou significativamente desde as filmagens com a CBS no final de abril. O governo da Ucrânia observa que o adido de defesa dos EUA, brigadeiro-general Garrick M. Harmon, chegou a Kiev em agosto de 2022 para controlar e monitorizar as armas.’
2024: Trump regressa — e, de repente, os media «objetivos» lembram-se de que a corrupção existe
Somente após a reeleição de Trump é que o NYT redescobre a corrupção na Ucrânia. Não:
- durante o escândalo dos projéteis do Ministério da Defesa
- durante o escândalo da aquisição de alimentos
- durante as irregularidades anteriores da Energoatom
- durante a remoção de jornalistas de guerra
- durante o uso da lei marcial por Zelensky para marginalizar rivais políticos
Não — o NYT encontra corrupção exatamente quando pode associá-la à política externa de Trump.
O artigo afirma:
- Biden manteve uma «supervisão rigorosa»
- Os conselhos de supervisão independentes foram eficazes
- A Ucrânia foi complacente e transparente
- Trump, sozinho, «permitiu a corrupção»
Isto não é uma análise — é apenas parte das atuais lutas partidárias internas nos EUA antes das eleições intercalares de 2026.
ALGUNS ESTUDOS DE CASOS DE CORRUPÇÃO (que o NYT «esqueceu»)
Estudo de caso n.º 1 — Ukrenergo: política do conselho de administração e destituição do CEO
A Ukrenergo, operadora estatal da rede elétrica, tornou-se um ponto nevrálgico das lutas políticas internas e externas da Ucrânia em 2024, quando o conselho fiscal votou pela destituição do CEO Volodymyr Kudrytskyi, no meio de alegações e pressão do Estado. Os membros internacionais do conselho renunciaram em protesto, alertando que as ações políticas corriam o risco de prejudicar os reparos de emergência e a confiança dos doadores.
Este episódio mostra o ‘manual’ clássico: As facções dentro de Kiev podem manipular a composição do conselho, deixar vagas em aberto e, depois, arquitetar resultados que favoreçam o controlo político — enquanto os doadores ocidentais continuam a financiar discretamente, pois não podem ser vistos a retirar o apoio a um parceiro em tempo de guerra. A Reuters e a Bloomberg cobriram a demissão dos membros estrangeiros do conselho e a destituição do CEO em 2024.
Estudo de caso n.º 2 — Energoatom: o escândalo de 100 milhões de dólares e o conselho de administração esvaziado
A forma como o New York Times enquadra o «exemplo central» — Energoatom — cristaliza o problema e os mecanismos reais. Os promotores alegam um esquema de subornos e lavagem de dinheiro de vários milhões de dólares ligado a contratos de energia; várias figuras de destaque foram implicadas e investigadas. Mas as investigações mostram não apenas criminalidade, mas como a supervisão foi corroída: conselhos foram adiados, vagas deixadas em aberto e estatutos reescritos para que especialistas externos não pudessem agir.
Os diplomatas ocidentais (pelo menos para consumo público ocidental) instaram à formação de conselhos precisamente porque os acordos pendentes acarretariam responsabilidades a longo prazo; atrasos e vagas em aberto tornaram-se proteções funcionais para os membros internos. A cobertura do The Guardian, Kyiv Independent, PBS e outros meios de comunicação documenta as alegações e a luta política no representante mais corrupto do Império Ocidental da corrupção.
Estudo de caso n.º 3 — Agência de Aquisições de Defesa: granadas de morteiro defeituosas e captura institucional
Após protestos públicos contra granadas de morteiro de 120 mm defeituosas e escândalos de aquisições mais amplos, os doadores pressionaram Kiev a criar um órgão de aquisições independente. No entanto, a agência recém-criada operava frequentemente sem um conselho de supervisão totalmente funcional; quando os conselhos começaram a ser formados, os ministérios passaram a reivindicar poderes de contratação e reescrever estatutos — transferindo a autoridade de volta para os ministérios correspondentes. O resultado foi previsível: os funcionários queixam-se da interferência dos membros estrangeiros do conselho, enquanto os críticos afirmam que os ministérios interferem quando são derrotados nas votações.
A OSW e o Kyiv Independent documentaram o braço de ferro burocrático e como a falta de supervisão permitiu contratos arriscados — ao mesmo tempo que, «acidentalmente», mencionavam apenas de forma casual os verdadeiros culpados, limitando a responsabilidade a frouxos escolhidos.
Estudo de caso n.º 4: O episódio da CBS e o problema do acompanhamento da ajuda
O documentário da CBS de 2022 e a sua subsequente retratação/revisão parcial na sequência da controvérsia diplomática revelaram tanto um problema logístico real — linhas de frente em ruínas, formações de voluntários indisciplinadas, acompanhamento fraco dos utilizadores finais — como um impulso político para controlar narrativas incómodas.
Mesmo que o documentário tenha realmente exagerado alguns números (o que ainda não foi comprovado além de «confiem em nós, irmãos — Slava Ucrânia e Rússia devem cair!»), ele soou o alarme sobre os limites da supervisão dos doadores em condições caóticas de guerra. O Business Insider e outros meios de comunicação globais registaram as controvérsias.
Porque é que a abordagem do NYT parece seletiva?
Ao ler a matéria de dezembro do The Times, percebe-se que ela é rica em factos e importante. Ela identifica corretamente as medidas concretas tomadas por Kiev que enfraqueceram a supervisão. Mas a sua interpretação política geral — de que a responsabilidade pela corrupção recai principalmente sobre uma mudança após a troca de governo nos EUA — ignora uma década de evidências que mostram que a supervisão era frágil, muitas vezes simbólica e repetidamente prejudicada muito antes de 2024.
Essa abordagem seletiva transforma o fracasso estrutural relacionado com o Projeto Ucrânia desde o seu início numa narrativa com atores bem definidos: a «boa» supervisão ocidental (sob os democratas/Biden/neoconservadores belicistas) contra a «má» nova política (sob os republicanos/Trump/MAGA «Só queremos os lucros do complexo industrial militar e os prémios da paz — obrigado pela vossa atenção a este assunto»).
Ao fazer isso, a reportagem do NYT é uma tentativa clara de absolver as escolhas políticas ocidentais de longa data que toleraram e até encorajaram a opacidade total por conveniência geopolítica — sem mencionar os “fluxos de caixa reversos” — e colocar toda a culpa pela “mudança repentina na guerra da Ucrânia” (que para as pessoas presas na bolha de relações públicas dos media ocidentais provavelmente é) em Trump — mas vamos deixar isso para outro texto no futuro.
A geopolítica da responsabilização seletiva
Por que razão os meios de comunicação ocidentais em geral oscilam entre uma cobertura bombástica e o silêncio total? Por duas razões:
Primeiro, a geopolítica. Durante os períodos em que a sobrevivência do regime de Kiev é a prioridade absoluta, os doadores influentes e os seus meios de comunicação preferem a unidade e a negação plausível ao escrutínio público.
Segundo, a política interna. Reportagens que permitem uma leitura partidária organizada — «o nosso lado ajudou; o lado deles recuou» — são politicamente úteis no país. Isso não isenta os líderes de Kiev: esses lacaios traidores devem ser responsabilizados.
Mas a responsabilização que surge apenas quando é útil eleitoralmente em Washington ou Londres parece mais um teatro partidário do que uma supervisão imparcial.
Uma reportagem cada vez mais típica dos media ocidentais/norte-americanos - PBS NEWS.
Conclusão — Como seria uma cobertura honesta?
Uma investigação responsável faria três coisas simultaneamente:
- documentaria casos concretos de corrupção e quem lucrou com eles;
- traçaria o longo arco (2014→2024) mostrando as fraquezas sistémicas e a cumplicidade dos doadores;
- e avaliaria como as necessidades do tempo de guerra remodelaram os incentivos e as motivações tanto para Kiev como para os seus apoiantes.
A matéria do NYT faz bem a primeira parte — mas o resto da história é muitas vezes excluído de um enquadramento concreto e reduzido a golpes contra o seu «inimigo» político.
Os leitores merecem uma cobertura imparcial que resista a narrativas partidárias simplistas e aceite a complexidade: A corrupção na Ucrânia é real, antiga e possibilitada tanto pelas escolhas de política externa dos seus mestres quanto pela ganância dos atores locais.
Sem comentários:
Enviar um comentário