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segunda-feira, 20 de outubro de 2025

RAQUEL VARELA, O CANTO DO MELRO – A VIDA DO PADRE JOSÉ MARTINS JÚNIOR (7)


Conta Martins que conseguiu emancipar-se da simpática companhia dos anfitriões e, num golpe de asa de trocas, com o mesmo bilhete de regresso a Portugal, voou para Olinda e Recife, onde foi recebido em audiência particular pelo «bispo vermelho», como era então classificado por parte da elite política e financeira não só do Brasil, mas também do estrangeiro.

— Era o tempo da ditadura militar — relembra Martins. — E fiquei impressionado, desiludido até, quando me abeirei de uma banca de jornais, perguntei ao vendedor, um homem sessentão, onde ficava o Paço de D. Helder e ele me deu como resposta: «Quero lá saber desse comunista! Não sei, não.» E era ali tão perto.

— Lá dentro, recebeu-me o Arcebispo Hélder da Câmara na sua sala de trabalho. Falou-me da ditadura vigente, da perseguição aos bispos e aos padres contestatários do regime, dissertou sobre as políticas

imperialistas do Pentágono, dos EUA. Convidou-me a permanecer toda a tarde e até à noite, porque era o dia 7 de setembro, o Dia Nacional do Brasil, e haveria espetáculo no recinto.

O edifício do Paço assemelhava-se a uma construção palaciana, tipologia colonial. Mas D. Hélder não vivia lá. Tinha-o cedido aos diversos movimentos e organizações culturais e sociais da diocese e foi habitar uma casa rasteira numa rua da periferia.

— Havia uma escada em frente do edifício, encimada por um patim largo, que servia de palco ao desfile e exibição dos muitos grupos etários, música, bailados, folclore, poemas, intervenções. Hélder da Câmara sentava-se num cadeirão ao lado do palco. E de repente vi-o descer os degraus da escada em direção a um homem de tez escura, alto, de chapéu largo na cabeça. Era um velhote. Pega-o pelo braço, fá-lo subir as escadas, senta-o no cadeirão e ali ficou de pé, ao lado do idoso, durante mais de duas horas. No encerramento da sessão comemorativa do Dia da Independência, Hélder da Câmara, um corpinho breve, magro e pequeno, parece agigantar-se e, numa voz clara, vibrante, exalta os valores do povo brasileiro, apela à manutenção dos mesmos valores. E remata com esta corajosa apóstrofe aos militares da ditadura: «Eles dizem por aí que eu não quero o progresso do Brasil. Falácia! Eu quero o progresso do meu país, mas com os brasileiros, pelos brasileiros e para os brasileiros. Essa é a diferença.»

Raquel Varela, O canto do melro – A vida do Padre José Martins Júnior – Bertrand 2024, pp 112-113.

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