Foto: Capital/Visão
O verão de 1976 estava ao rubro na Madeira. Greves nas conservas, nos pescadores da baleia, nos operários da construção civil. Martins Júnior era a figura central da Madeira dos GDUP-Grupos Dinami- zadores de Unidade Popular -, um partido que unificava a extrema-esquerda e o poder popular, e que concorria às eleições. A sua figura de proa era Otelo Saraiva de Carvalho, que chegou à Madeira acompanhado por Zeca Afonso, o cantautor primordial da revolução, para a campanha autárquica.
Mal aterraram na ilha - rodeados de homens do povo, todos com bigodes cheios e uma barba crescida e bem aparada - foram avisados de que não podiam ir a Machico fazer o comício porque o seu mandatário, o Padre Martins, não pedira a Azeredo autorização para o mesmo com as 48 horas de antecedência previstas na lei.
Ninguém se deixou intimidar. Otelo discursou no Funchal, ouviram-se cânticos, caíram flores sobre o herói do 25 de Abril. Zeca Afonso cantou o hino da revolução, o «Grândola Vila Morena», perante o júbilo dos populares. (…)
Seguiram para Machico. No largo em frente da Igreja Matriz, Zeca e Otelo juntaram-se a Martins e subiram os três ao pedestal da estátua do descobridor e primeiro capitão-donatário da capitania de Machico, Tristão Vaz Teixeira. Era já noite e, num ápice, a vila de Machico encheu-se de apoiantes de Otelo à presidência da República. Falaram à multidão.
— No meio do entusiasmo crescente, uma euforia contagiante, acontece o insólito — relata Martins —, só comparável às hordas tribais ou aos piratas que, noutros tempos, saqueavam as populações indefesas das ilhas:
‘Ainda estavam Otelo e Zeca no pedestal da estátua, quando de repente há um apagão total no centro da vila, hoje cidade, de Machico.
Como num filme de terror, entram desabridamente sobre a multidão vários Unimog — lembrei-me logo da guerra colonial — carregados de tropas que começam a desancar à coronhada em cima das pessoas, que fugiam como podiam, espavoridas, às escuras, pelas ruas, uns para o lado do mar, outros para norte, para leste e oeste, aos gritos, e em qualquer direção. Uma cena de perseguição aos infiéis na Idade Média. Otelo, Zeca e outros elementos desapareceram, não se sabe para onde, e pernoitaram em casas particulares, cujos moradores até hoje desconheço.’
A fúria de Azeredo tinha um único alvo. Prender Otelo e Martins. Era o que major Oliveira e o seu grupo pretendiam quando apareceram no adro da igreja da Ribeira Seca, onde estavam algumas mulheres idosas, mas cientes do que se passava.
— Viram por aqui o Otelo, estará na casa paroquial do Padre Martins? — pergunta pidesca que teve como resposta:
— Olhe, senhor, «otelos» aqui, não. Isto é gente pobre, não há «otelos». Só se for na Matur... Lá é que tem um grande hotel.
E lá foram embora, embaçados. A polícia também desistiu daquela caça às bruxas no último quartel do século xx. No dia seguinte, cedo, ainda a neblina pairava no vale e o sol não tinha chegado a passar o Pico do Facho, levaram Otelo e Zeca e a sua comitiva, sem desassossego, ao aeroporto. A camioneta ia cheia de homens e mulheres, nenhuma criança porque a essa hora estavam a preparar-se para a escola. À despedida, lenços brancos disseram adeus a Otelo.
Quando regressaram a Machico, ouviram dizer que a FLAMA tinha ameaçado matar Otelo, que obrigatoriamente tinha de passar numa pequena ponte, chamada Ponte do Seixo, rumo ao aeroporto. O boato veio a confirmar-se pouco depois, quando se soube que uma criança, a caminho da escola, vira dois fios que se perdiam estendidos pelo chão entre as ervas e puxou-os porque «serviam de antena para o radiozínio do pai».
Ficou então desvendado o mistério. Os fios estavam ligados a um caixote com 12 quilos de trotil que se encontrava debaixo da ponte, uma diabólica embalagem que, se fosse detonada, levaria pelos ares a zona ribeirinha de Água de Pena. O caixote ostentava as iniciais BRIMA, Brigadas Revolucionárias da Ilha da Madeira. E tinha destinatário: «Ao major de Artilharia, Otelo Saraiva de Carvalho, com muitos cumprimentos e votos de boa viagem.»
— Passados alguns anos — relembra Martins, indignado — após o inferno da FLAMA, um dos seus corifeus, José Campos, veio publicamente esclarecer que, por ordem do comando superior flamista, os explosivos foram desativados quando souberam que o «Padre Martins enchia de crianças o autocarro que transportava Otelo». Mentira grosseira! Pior ainda é o testemunho de um reputado historiador da Madeira, apaniguado do regime regional, que escarrapachou no seu «Dicionário Breve da Autonomia» a versão da FLAMA como única e autêntica.
Raquel Varela, O canto do melro – A vida do Padre José Martins Júnior – Bertrand 2024, pp 163-166.

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