Newsletter: Receba notificações por email de novos textos publicados:

domingo, 12 de janeiro de 2025

LEITURAS MARGINAIS

Foto: Daniel Beloumou Olomo/AFP/Getty Images

“E querem saber como ficará grande parte do país se for para a frente a alteração profunda ao Regulamento Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial, vulgo Lei dos solos, pensem no que era a Ericeira há 20 anos e no que é hoje. Há 20 anos, antes do boom do surf, a Ericeira era uma pequena e agradável vila piscatória que, além do centro histórico, se dispersava suavemente em esparsas casas pelos montes circundantes. Hoje, o tal centro, com o seu Largo do Jogo da Bola, só é descortinável por quem o procurar, esmagado que está por uma avalancha de betão em toda a volta, e pelas encostas dos montes acima cresceu uma floresta de construções de toda a espécie, altura e volumetria, sem nenhuma ordem urbanística ou harmonia arquitetónica, ocupando cimos, vales, curvas de nível, todos os espaços para qualquer lado que se olhe: um pesadelo. Não sei que leis ou regulamentos permitiram tamanho deboche — ou, não o permitindo, como foram tão facilmente contornados. Mas se a alteração à Lei dos solos proposta pelo Governo da AD for por diante, este será, disso não tenho dúvidas, o futuro de todas as outras Ericeiras do país que ainda restam por esmagar. O pretexto é facultar à construção o acesso aos terrenos rústicos, incluindo em zonas de paisagem protegida, linhas de água e reserva agrícola, para, a ‘custos moderados’, construir habitação ‘acessível’. Um imenso barrete, desde logo nos seus pressupostos: ‘custos moderados’, diz a lei, são aqueles que não ultrapassem em mais de 125% o valor médio da habitação do concelho: ou seja, 25% a mais do que os custos especulativos já existentes. E, mesmo assim, tal só se aplicará a 70% das novas construções. Bastava isto para perceber que, mesmo que fosse possível controlar na prática as limitações, tal já seria um excelente negócio oferecido de bandeja à especulação imobiliária, sem qualquer garantia, antes pelo contrário, de que implicaria mais habitação ‘acessível’ à classe média e média-baixa: o Pai Natal já passou.

Mas o pior de tudo está no modo como isto será feito: por simples deliberação autárquica. Devem estar a brincar connosco, até parece que não sabem como é que o país, nas suas zonas de maior apetência urbanística, como na orla costeira, foi vandalizado por iniciativa autárquica. Apesar da REN, da RAN, do Plano Natura 2000, dos PDM, que tinham de ser aprovados pelo Governo central. Agora, entrega-se tudo às autarquias e dão-se-lhes plenos poderes para fazerem o que quiserem com a paisagem dos seus concelhos. Sem que nunca tenha havido a coragem de fazer aquilo que tantas vezes aqui defendi, que é retirar as receitas prediais do orçamento das autarquias, substituindo-as por dotações do Orçamento do Estado, em função de critérios objetivos e de mérito — única forma de quebrar o círculo vicioso de mais construção: mais receitas; mais rotundas e obras de ostentação; mais votos. E estou a falar apenas da tentação irresistível dos autarcas, por volúpia de mais receitas, por ignorância, por confusão entre qualidade e aquilo a que chamam ‘desenvolvimento’, ficarem agora de mãos livres para acabarem de edificar um Portugal à medida da sua visão. Porque outra coisa são as oportunidades sem-fim que se abrem à corrupção autárquica — largamente documentada e sabida como o centro nevrálgico e magnético da corrupção entre nós. Para esses, este Decreto-Lei do Governo AD é um brinde caído dos céus, é como escancarar a porta do galinheiro à raposa.

Não fiquem, pois, surpreendidos por saber que a lei foi proposta por um Governo da AD (revogando uma lei de um seu Governo anterior), e que, chamada à discussão no Parlamento, verificou-se ter o apoio mal disfarçado do PS. Vêm aí eleições autárquicas e isto é matéria muito sensível para os caciques locais dos dois maiores partidos autárquicos — a que se junta, por razões idênticas, o Chega — que não podem correr o risco de os indisporem. A defesa que PSD e PS fazem da lei é de uma hipocrisia sem pudor, mais do que visando convencer tolos ou distraídos, tentando apaziguar as suas envergonhadas consciências. Mas não façamos confusão: estamos no domínio do que mais interessa na política: a governação de proximidade, o planeamento e preservação paisagística do país e o combate à corrupção onde ela começa e mais danos causa. A votação na Assembleia da República será um raro momento de verdade ou de máscaras."

Miguel Sousa Tavares, Expresso 10jan2025.

Sem comentários: