- “Há ainda uma sólida Lisboa de provincianos que usa dois, três apelidos mas que só dá um beijinho porque o povo dá dois. Vive na Estrela, Lapa, Campo de Ourique ou Avenidas Novas, na maioria dos casos chegou em primeira, máximo segunda geração das Beiras, Trás-os-Montes e Algarves. Trouxe os pergaminhos dos seus antepassados - no primeiro jantar ficamos a saber que com ligação direta à nobreza rural e/ou relevantes serviços prestados à corte de D. Carlos -, seguiram-se estudos universitários na capital, financiados com a venda de azeitona, casas compradas como o dinheiros da fabriqueta de conservas ou cortiça, uma farmácia em Viseu ou venda de sucesso em São Pedro do Sul, mais recentemente a 'indústria têxtil' que exportava t-shirts para a Europa ‘antes do chinês dar cabo do negócio’. Três quartos a quatro quintos da família trabalha na função pública, onde aperfeiçoa a incompetência há décadas; os familiares que entraram na política distribuem empregos aos restantes com menos lábia e os que entram na carreira diplomática podem atingir níveis de cagança admiráveis, que se manifesta em profundos conhecimentos vitivinícolas e uso abundante de palavrões (sotto voce, por educação) para provar que são tão, tão, que já podem falar como os descendentes dos galegos que nunca saíram das tabernas dos avós em Campolide, Santos e Alfama e que agora vendem azulejos com desenhos de sardinhas ou alugam quartos em regime de alojamento local.” Miguel Szymanski, Actualizar as ossadas. O escritor foi acusado de ser preconceituoso por leitores que não conseguiram penetrar na sátira, na caricatura que MS faz em relação aos atuais habitantes do centro de Lisboa, descendentes de gente que migrou do interior de Portugal. Não repararam, - nem digeriram -, o título ‘ Actualizar as ossadas’, que se referia à trasladação de Eça de Queiroz de Santa Cruz do Douro, Baião, para o Panteão. Não só não repararam nesse pormenor como também se esqueceram de que Eça, - se usarmos o mesmo diapasão dos leitores críticos -, terá sido preconceituoso na descrição que faz da sociedade portuguesa do seu tempo e que, - oh ironia! -, continua a ser estudado nas escolas e o cortejo da sua transladação foi feito sob chuva copiosa, tendo a cerimónia merecido inflamado discurso de sua excelência o presidente da república Marcelo Rebelo de Sousa.
- “Eça de Queirós não precisa do Panteão. Já o Panteão, sim, cada vez mais precisa de Eça, como se conseguiu observar hoje na autodescriação hilariante que Marcelo fez de si próprio, como personagem de Eça. A burguesia na sua luta pelo poder- deste as revoluções liberais (francesa) - procura construir um Estado-nação, que tenha um exército, cobrança fiscal, mercado único nacional, e uma couraça simbólica que crie a ideia de Nação (contra a ideia de luta de classes), assente num suposto destino comum. (…) Hoje, encabeçada por Marcelo, entre outros, vende casas e delapida serviços públicos, clama pela guerra, e diz que o turismo é uma ‘indústria’. (…) Neste projecto escritores, intelectuais, académicos morrem à fome ou emigram. Foi contra tudo isto que Eça se insurgiu e escreveu, ele mesmo figura central dos socialistas Conferências Democráticas. Mal ele sabia que agora, neste casino, os seus restos mortais iam servir de maquilhagem para uma burguesia e um Estado-nação que não existem mais. O discurso de vários responsáveis pelo estado a que isto chegou é hilariante para quem tem claro que Eça é imortal e - por isso mesmo - é hoje o corpo que o cadáver da burguesia portuguesa procura manter vivo no Panteão. (…)” Raquel Varela.
- “O espírito de Eça de Queirós, incarnado pelo ChatGPT, escreve sobre a transladação dos seus restos mortais para o Panteão Nacional: "Ah, caros amigos, que cena memorável foi a transladação dos meus restos mortais para o tão augusto e marmóreo Panteão Nacional! Um espetáculo de pompa e circunstância, onde as excelências, engravatadas como pavões em dia de gala, desfilavam com uma gravidade cómica, qual procissão de almas perdidas em busca do protagonismo perdido. Ali estavam os políticos do nosso amado Portugal, disputando entre si o melhor ângulo para a fotografia histórica. Ora, não lhes leveis a mal – o seu zelo não era por mim, pobre cadáver literário, mas pela luz do flash, essa que ilumina mais que o espírito da literatura. Uns com o semblante solene de quem nunca abriu um dos meus livros, outros com discursos decorados à última hora, mal contendo os risos ao citar “Os Maias”, obra que, presumo, pensavam ser sobre horticultura. E os poderosos, esses senhores que governam com um misto de ignorância e convicção, lá estavam também, como se a minha transladação fosse, de repente, um triunfo da pátria. Falavam de valores e cultura, enquanto um deles, não identificado mas demasiado familiar, consultava apressadamente o telemóvel para verificar a popularidade do evento nas redes sociais. Ah, e o povo, que maravilha! Algumas almas sinceras, outras apenas curiosas, vinham assistir ao espetáculo como quem vai ao circo – e com razão, pois o circo era grande. Vi rostos admirados a perguntar: “E quem era este Eça, afinal?” Não lhes culpo, pois os meus livros não são tão populares como a bola ou a telenovela, mas ainda assim, confesso, senti um ligeiro desconforto ao ouvir um petiz perguntar se eu era um novo treinador da seleção. E lá me levaram, como uma espécie de troféu literário, para repousar ao lado dos grandes vultos da nação. Ah, se eles soubessem o quanto critiquei a vaidade, a hipocrisia e o formalismo, talvez tivessem pensado duas vezes antes de me colocar no meio de tão ilustres companhias. Mas, enfim, o Panteão é a última ironia da minha vida – ou da minha morte – e por isso aceito-a com o mesmo sorriso mordaz com que vos retratei a todos. Que descansem bem, meus senhores. Eu, por cá, ficarei eternamente a observar-vos, do alto do mármore, com a mesma verve que me fez imortal." "Ah, mas claro, sejamos mais cáusticos, pois a ocasião merece! Imaginem-me, senhores, um humilde cadáver literário, arrancado ao descanso modesto para ser exibido como um troféu de Estado. Que ironia deliciosa: em vida critiquei as elites com palavras afiadas como navalhas, e agora, morto, sou carregado por elas como se fosse um santo padroeiro dos discursos vazios! Lá estavam eles, os políticos, empertigados como pavões de feira, a trocarem sorrisos e apertos de mão falsos, como se o momento fosse sobre eles — e, sejamos honestos, era mesmo. No palanque, um deputado ergueu a voz, declamando um trecho do meu trabalho com a mesma paixão com que, provavelmente, lê um contrato de arrendamento. “Eça é nosso!” gritavam, como se o meu pobre esqueleto pudesse ser anexado à lista de patrimónios culturais que nunca leram, mas adoram citar em campanhas. E os poderosos, ah, esses eram o auge da tragicomédia. Lá vinham, as barrigas inchadas de condecorações e almoços de Estado, proclamando que a minha presença no Panteão era “um triunfo para a cultura nacional”. Cultura essa que, coitada, deve ter soltado uma gargalhada abafada no canto da sala, enquanto alguém perguntava baixinho: “E este Eça, ele escreveu o quê mesmo? Algo sobre amores e colégios, não era?” Ah, e o povo, a cereja deste bolo podre. Lá estavam, aplaudindo com um entusiasmo digno de quem assiste à final da Taça de Portugal. Alguns, os mais novos, olhavam para o meu retrato nos cartazes e perguntavam aos pais se eu era um influencer do TikTok. Outros, de ar grave, disfarçavam o tédio com as caras sérias que guardam para funerais e debates na Assembleia. Um senhor até exclamou: “Grande Eça, sempre gostei da série dele!” – suponho que confundiu os meus romances com episódios da Netflix. E, finalmente, lá cheguei ao Panteão, esse mausoléu monumental onde os mortos convivem em silêncio, talvez constrangidos por tanta hipocrisia. Que grupo! Camões, Amália, e agora eu, todos lado a lado, a representar o que o país tem de melhor… ou pelo menos aquilo que dá boas fotografias e discursos fáceis. Pois que fique então registado: aqui jaz Eça de Queirós, o escritor que denunciou a farsa dos poderosos e, na mais cruel das ironias, foi transformado no seu emblema post-mortem. Riam-se, meus amigos, pois, do mármore frio, eu estou certamente a rir-me de vós." Vitor Duarte Teodoro.
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