BICO CALADO
- 1.
O cargueiro alemão MV Kathrin está neste momento a subir a costa
ocidental africana com bandeira de Portugal e oito contentores de
explosivos RDX/ Hexogen destinados a Israel. O RDX é um componente
importante de bombas utilizadas por Israel em Gaza. Documentos que
obtive confirmam
a existência desta carga a bordo e o seu destino final.
Um dos documentos indica que o RDX tem uma licença de importação
emitida pelo ministério israelita da Economia, e foi importado pela
israelita IMI Systems (que faz parte de uma das maiores companhias de
material militar de Israel, a Elbit Systems). Foi ao verificar
isto que a polícia namibiana cancelou, a 24 de Agosto, a autorização
anteriormente dada para o navio aportar em Walvis Bay, Namíbia. E
depois o governo namibiano, através da sua ministra da Justiça, fez
declarações públicas, explicando que o navio levava explosivos
para Israel, e por isso a Namíbia se recusava a recebê-lo, em
respeito pela lei internacional e pela Convenção para a Prevenção
e Repressão do Crime de Genocídio. Apesar disso, o ministro de
Estado e dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel disse a 29 de Agosto
que o navio não transportava carga para a guerra, e que o destino
não era Israel. No momento em que escrevo esta crónica (tarde de
sexta-feira, dia 6), o registo de cargueiros mostra que o MV Kathrin
está bem acima da Namíbia, já no limite norte das águas
territoriais de Angola, e bastante ao largo da costa. A próxima
escala que indica é Bar, no Montenegro, onde prevê chegar a 27 de
Setembro. A bandeira sob a qual navega continua a ser a portuguesa.
Movimentos de solidariedade com a Palestina, e também o Bloco de
Esquerda, questionaram o governo português e apelam para que
Portugal retire a bandeira, de modo a travar o navio. O mesmo pedido
foi feito pela relatora especial da ONU, Francesca Albanese, e por
uma organização europeia de advogados, com sede em Amesterdão e
representações em Berlim e Londres. 2. Um dos documentos que obtive
foi o cancelamento pela polícia da Namíbia, cuja imagem aqui se
reproduz. O outro é a carta que essa organização de advogados —
a European Legal Suport Center, ELSC — enviou ontem, dia 6, ao
governo português (ministérios da Justiça e dos Negócios
Estrangeiros), bem como à Direcção-Geral dos Recursos Naturais,
Segurança e Serviços Marítimos e ao Registo Internacional de
Navios da Madeira (MAR), onde foi comprada a licença para o Kathrin
navegar sob bandeira portuguesa (todo um outro assunto a investigar:
na Madeira montou-se um sistema que já vai em mais de 900 licenças
para usar a bandeira portuguesa em navios). Logo no cabeçalho, a
carta dos advogados diz ao que vem: “Pedido para remover a bandeira
portuguesa do navio Kathrin IMO 9570620, que transporta explosivos
destinados a Israel, de acordo com as obrigações de todas as partes
para prevenir o crime de genocídio.” O ELSC apresenta-se como
organização mandatada para dar assistência legal ao movimento de
solidariedade palestiniano, indica que o RDX deverá ser descarregado
em Koper, Eslovénia, e a partir daí levado até Israel. Lembra a
recusa da Namíbia a 24 de Agosto, e as recomendações do Tribunal
Internacional de Justiça para a prevenção de genocídio a 24 de
Janeiro. Refere a bandeira portuguesa atribuída ao navio na Madeira.
E então sublinha: “Há o risco claro de os explosivos serem usados
na execução de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. Não
agir contra este transporte é uma violação flagrante
das obrigações de todos para prevenir o crime de genocídio, tal
como estabelecido na Convenção de Genocídio. Pedimos ao MAR e às
autoridades portuguesas competentes que removam imediatamente a
bandeira.” A carta faz um pequeno historial de leis internacionais
e antecedentes. Resume o que levou a Namíbia a recusar o navio ao
verificar
quem importara a sua carga. Explica o que é o RDX, como Israel o
usa. E lembra o que significa
dar bandeira a um navio: “Portugal tem a responsabilidade de
exercer jurisdição efectiva e controlo.” Como estabelecido no
Artigo 94 da Convenção dos Mares da ONU. “O Estado-bandeira tem
direito de inspeccionar, deter e regular navios sob a sua bandeira
para assegurar o cumprimento das leis nacionais e internacionais.”
Tal como tem “o dever” de “impedir os navios de cometerem actos
ilegais”. Os advogados recordam que a Constituição Portuguesa
considera a lei internacional como parte da lei nacional. Recordam
que Portugal assinou a Convenção de Genocídio e as Convenções de
Genebra, bem como outros tratados. E que, de acordo com estas
obrigações, “o governo português tem de assegurar que o registo
[da bandeira] não facilita, intencionalmente ou inadvertidamente,
acções que contribuam para a perpetuação de crimes de guerra e
crimes contra a Humanidade”. Portugal, em suma, “está não
apenas autorizado como obrigado a remover a bandeira do navio para
prevenir a sua cumplicidade na execução de crimes de guerra”. 3.
Tive acesso a estes documentos na tarde de ontem. Antes tinha enviado
um conjunto de questões ao ministro Paulo Rangel. Copio-as aqui: —
O governo vai retirar a bandeira portuguesa do navio? — O governo
nega que o destino Ænal da carga do navio é Israel? — Se sim,
desmente o governo da Namíbia? Com que base? — Contactou o governo
da Namíbia sobre o assunto? Se sim, que informações obteve? — Os
tipos de explosivos a bordo são usados para fabricar bombas. Como
pode o governo português dizer que não serão usados como munições?
Que garantia dá disso? — O caso foi noticiado em todo o mundo, da
BBC a Israel. Há uma campanha internacional para parar o navio. A
Namíbia actuou. Portugal, não. O governo está ciente do risco de
ser cúmplice em crimes de guerra e violação da convenção contra
o genocídio? Que garantias pode dar aos portugueses de que a
bandeira nacional não é associada a um navio suspeito? — A
bandeira portuguesa neste navio coincide com [o responsável da
política externa da UE] Josep Borrell pôr em cima da mesa a
possibilidade de sanções contra membros do governo de Israel.
Portugal admite aplicá-las. Retirar a bandeira não seria um gesto
nesse sentido?' Não recebi resposta até ao fecho desta página. 4.
Além do RDX, sabe-se que a bordo do Kathrin estão 60 contentores de
TNT para outro destino não revelado. Nas suas declarações de 29 de
Agosto aos jornalistas, Rangel assegurou: “O navio não transporta
armas, nem munições, nem material de guerra, mas transporta
explosivos para fins
de produção comercial.” Já cinco dias antes, a 24, as
autoridades da Namíbia tinham confirmado
que isto não era verdade. Rangel sabia? Ou não sabia porque não
procurou saber? Disse também que o navio ia para Montenegro e
Eslovénia, não para Israel. Tecnicamente não é falso, porque
parte da carga é que irá para Israel (depois de descarregada na
Eslovénia). Mas Rangel sabe bem que a questão política, moral —
e legal, como apontam a relatora da ONU e os advogados europeus — é
Portugal dar a bandeira para transportar essa carga. Rangel sabia que
o destino final
da carga era Israel? Como o próprio Rangel lembrou nesse 29 de
Agosto, o governo português decidiu em Junho proibir a exportação
de armas e munições para Israel. Mal a Namíbia confirmou
o destino final
da carga de RDX, seria então natural que Portugal Æzesse tudo para
assegurar que não estava a transportar sob a sua bandeira munições
para a guerra. Passaram mais de duas semanas desde então. No sábado
em que esta crónica sai, o navio ainda vai a subir a costa ocidental
de África. Há tempo de lhe retirar a bandeira. Evitando o que a
relatora da ONU resumiu assim, na rede X: “Estou extremamente
preocupada com o potencial patrocínio de Portugal ao navio, e o
facilitar da entrega do Kathrin. Isto pode ser uma violação da
Convenção de Genocídio.” Portugal é um país minúsculo. Mas se
pode, com a sua bandeira, fazer navegar um navio que carrega munições
que podem matar gente em Gaza, também pode, só com a sua bandeira,
pará-lo. E hoje, 7 de Setembro, vamos com 11 meses de guerra". Alexandra
Lucas Coelho, Documentos confirmam
munições para Israel em navio com bandeira portuguesa – Público
7Set2024.
- Educadores de infância “migram” para o público . Diferença
salarial, que pode chegar aos 350 euros, é a principal razão para
saírem do privado. JN 9Set2024.
- Ataque na fronteira entre Jordânia e Cisjordânia faz três
mortos. Título do Público de 9 de setembro a esconder o abate de 3
seguranças israelitas.
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