terça-feira, 10 de setembro de 2024

BICO CALADO

  • 1. O cargueiro alemão MV Kathrin está neste momento a subir a costa ocidental africana com bandeira de Portugal e oito contentores de explosivos RDX/ Hexogen destinados a Israel. O RDX é um componente importante de bombas utilizadas por Israel em Gaza. Documentos que obtive confirmam a existência desta carga a bordo e o seu destino final. Um dos documentos indica que o RDX tem uma licença de importação emitida pelo ministério israelita da Economia, e foi importado pela israelita IMI Systems (que faz parte de uma das maiores companhias de material militar de Israel, a Elbit Systems). Foi ao verificar isto que a polícia namibiana cancelou, a 24 de Agosto, a autorização anteriormente dada para o navio aportar em Walvis Bay, Namíbia. E depois o governo namibiano, através da sua ministra da Justiça, fez declarações públicas, explicando que o navio levava explosivos para Israel, e por isso a Namíbia se recusava a recebê-lo, em respeito pela lei internacional e pela Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. Apesar disso, o ministro de Estado e dos Negócios Estrangeiros Paulo Rangel disse a 29 de Agosto que o navio não transportava carga para a guerra, e que o destino não era Israel. No momento em que escrevo esta crónica (tarde de sexta-feira, dia 6), o registo de cargueiros mostra que o MV Kathrin está bem acima da Namíbia, já no limite norte das águas territoriais de Angola, e bastante ao largo da costa. A próxima escala que indica é Bar, no Montenegro, onde prevê chegar a 27 de Setembro. A bandeira sob a qual navega continua a ser a portuguesa. Movimentos de solidariedade com a Palestina, e também o Bloco de Esquerda, questionaram o governo português e apelam para que Portugal retire a bandeira, de modo a travar o navio. O mesmo pedido foi feito pela relatora especial da ONU, Francesca Albanese, e por uma organização europeia de advogados, com sede em Amesterdão e representações em Berlim e Londres. 2. Um dos documentos que obtive foi o cancelamento pela polícia da Namíbia, cuja imagem aqui se reproduz. O outro é a carta que essa organização de advogados — a European Legal Suport Center, ELSC — enviou ontem, dia 6, ao governo português (ministérios da Justiça e dos Negócios Estrangeiros), bem como à Direcção-Geral dos Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos e ao Registo Internacional de Navios da Madeira (MAR), onde foi comprada a licença para o Kathrin navegar sob bandeira portuguesa (todo um outro assunto a investigar: na Madeira montou-se um sistema que já vai em mais de 900 licenças para usar a bandeira portuguesa em navios). Logo no cabeçalho, a carta dos advogados diz ao que vem: “Pedido para remover a bandeira portuguesa do navio Kathrin IMO 9570620, que transporta explosivos destinados a Israel, de acordo com as obrigações de todas as partes para prevenir o crime de genocídio.” O ELSC apresenta-se como organização mandatada para dar assistência legal ao movimento de solidariedade palestiniano, indica que o RDX deverá ser descarregado em Koper, Eslovénia, e a partir daí levado até Israel. Lembra a recusa da Namíbia a 24 de Agosto, e as recomendações do Tribunal Internacional de Justiça para a prevenção de genocídio a 24 de Janeiro. Refere a bandeira portuguesa atribuída ao navio na Madeira. E então sublinha: “Há o risco claro de os explosivos serem usados na execução de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade. Não agir contra este transporte é uma violação flagrante das obrigações de todos para prevenir o crime de genocídio, tal como estabelecido na Convenção de Genocídio. Pedimos ao MAR e às autoridades portuguesas competentes que removam imediatamente a bandeira.” A carta faz um pequeno historial de leis internacionais e antecedentes. Resume o que levou a Namíbia a recusar o navio ao verificar quem importara a sua carga. Explica o que é o RDX, como Israel o usa. E lembra o que significa dar bandeira a um navio: “Portugal tem a responsabilidade de exercer jurisdição efectiva e controlo.” Como estabelecido no Artigo 94 da Convenção dos Mares da ONU. “O Estado-bandeira tem direito de inspeccionar, deter e regular navios sob a sua bandeira para assegurar o cumprimento das leis nacionais e internacionais.” Tal como tem “o dever” de “impedir os navios de cometerem actos ilegais”. Os advogados recordam que a Constituição Portuguesa considera a lei internacional como parte da lei nacional. Recordam que Portugal assinou a Convenção de Genocídio e as Convenções de Genebra, bem como outros tratados. E que, de acordo com estas obrigações, “o governo português tem de assegurar que o registo [da bandeira] não facilita, intencionalmente ou inadvertidamente, acções que contribuam para a perpetuação de crimes de guerra e crimes contra a Humanidade”. Portugal, em suma, “está não apenas autorizado como obrigado a remover a bandeira do navio para prevenir a sua cumplicidade na execução de crimes de guerra”. 3. Tive acesso a estes documentos na tarde de ontem. Antes tinha enviado um conjunto de questões ao ministro Paulo Rangel. Copio-as aqui: — O governo vai retirar a bandeira portuguesa do navio? — O governo nega que o destino Ænal da carga do navio é Israel? — Se sim, desmente o governo da Namíbia? Com que base? — Contactou o governo da Namíbia sobre o assunto? Se sim, que informações obteve? — Os tipos de explosivos a bordo são usados para fabricar bombas. Como pode o governo português dizer que não serão usados como munições? Que garantia dá disso? — O caso foi noticiado em todo o mundo, da BBC a Israel. Há uma campanha internacional para parar o navio. A Namíbia actuou. Portugal, não. O governo está ciente do risco de ser cúmplice em crimes de guerra e violação da convenção contra o genocídio? Que garantias pode dar aos portugueses de que a bandeira nacional não é associada a um navio suspeito? — A bandeira portuguesa neste navio coincide com [o responsável da política externa da UE] Josep Borrell pôr em cima da mesa a possibilidade de sanções contra membros do governo de Israel. Portugal admite aplicá-las. Retirar a bandeira não seria um gesto nesse sentido?' Não recebi resposta até ao fecho desta página. 4. Além do RDX, sabe-se que a bordo do Kathrin estão 60 contentores de TNT para outro destino não revelado. Nas suas declarações de 29 de Agosto aos jornalistas, Rangel assegurou: “O navio não transporta armas, nem munições, nem material de guerra, mas transporta explosivos para fins de produção comercial.” Já cinco dias antes, a 24, as autoridades da Namíbia tinham confirmado que isto não era verdade. Rangel sabia? Ou não sabia porque não procurou saber? Disse também que o navio ia para Montenegro e Eslovénia, não para Israel. Tecnicamente não é falso, porque parte da carga é que irá para Israel (depois de descarregada na Eslovénia). Mas Rangel sabe bem que a questão política, moral — e legal, como apontam a relatora da ONU e os advogados europeus — é Portugal dar a bandeira para transportar essa carga. Rangel sabia que o destino final da carga era Israel? Como o próprio Rangel lembrou nesse 29 de Agosto, o governo português decidiu em Junho proibir a exportação de armas e munições para Israel. Mal a Namíbia confirmou o destino final da carga de RDX, seria então natural que Portugal Æzesse tudo para assegurar que não estava a transportar sob a sua bandeira munições para a guerra. Passaram mais de duas semanas desde então. No sábado em que esta crónica sai, o navio ainda vai a subir a costa ocidental de África. Há tempo de lhe retirar a bandeira. Evitando o que a relatora da ONU resumiu assim, na rede X: “Estou extremamente preocupada com o potencial patrocínio de Portugal ao navio, e o facilitar da entrega do Kathrin. Isto pode ser uma violação da Convenção de Genocídio.” Portugal é um país minúsculo. Mas se pode, com a sua bandeira, fazer navegar um navio que carrega munições que podem matar gente em Gaza, também pode, só com a sua bandeira, pará-lo. E hoje, 7 de Setembro, vamos com 11 meses de guerra"Alexandra Lucas Coelho, Documentos confirmam munições para Israel em navio com bandeira portuguesaPúblico 7Set2024.
  • Educadores de infância “migram” para o público . Diferença salarial, que pode chegar aos 350 euros, é a principal razão para saírem do privado. JN 9Set2024.
  • Ataque na fronteira entre Jordânia e Cisjordânia faz três mortos. Título do Público de 9 de setembro a esconder o abate de 3 seguranças israelitas.

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