sábado, 6 de julho de 2024

‘QUANDO PORTUGAL ARDEU’ 17


“Os militares calcorreiam quilómetros a pé, ao frio, com chuva e neve. Comem rações de combate, alguns dormem no chão. Ouvem mulheres desculparem-se do seu mutismo por considerarem que reivindicar estradas, pedir uma «carreira de camioneta» ou melhoramentos para a terra «é assunto de homens». Os soldados deparam-se com aldeias tristonhas, esquecidas, sem luz, água, esgotos ou rádios. Falam com gente alimentada a um naco de pão de milho e uma tigela de sopa. (…)
Para lá do Marão, os militares abrem caminhos, arranjam estradas, levam luz e saneamento, mas nem sempre se mostram hábeis no discurso: «Não façais caso do padre», dirá um oficial. «O padre é para a religião e a religião é para o outro mundo, não para este.» Jaime Neves, nascido na terra de Miguel Torga e chefe do Regimento de Comandos, regressa à capital «impressionado» e confessa-se a Otelo Saraiva de Carvalho: «Eh pá, tu não imaginas o que é aquilo!», desabafa. «A gente chegava e o povo fugia todo para dentro das casas, a fechar portas e janelas!» A proprietária de uma pensão conta que os comunistas «tiram as coisas a quem tem», andam «vestidos de igual» e «tiram os filhos quando nascem e só os dão quando são grandes».

Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu (2017) – Oficina do Livro 2022, pp 142-143.
[Imagem: Jaime Neves com Otelo Saraiva de Carvalho/RTP]

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