sexta-feira, 5 de julho de 2024

‘QUANDO PORTUGAL ARDEU’ 16


A 11 de junho de 1975, D. Francisco Maria da Silva estava de partida para Manaus (Brasil), em viagem pastoral. Quando chegou à sala de embarque do aeroporto da Portela, em Lisboa, e após longa espera, foi ‘convidado’, via altifalante, a deslocar-se à alfândega. ‘Senhor arcebispo, é acusado de ser portador de divisas’, anunciaram-lhe. Pediram passaporte e bilhete. (…)

Dias antes, o COPCON recebera uma carta anónima a denunciar que o prelado se preparava para viajar em direção ao Brasil transportando uma quantia ilegal de dinheiro. Telefonemas, não identificados, reforçaram a suspeita. Nesse tempo, o tráfico de divisas mantinha as autoridades em alvoroço ao mínimo detalhe. D. Francisco foi revistado da cabeça aos pés. Remexidos os seus pertences, nada se encontrara. (…)

Na verdade, a ideia delirante para provocar a humilhação do arcebispo saíra do génio de Jorge Pereira Jardim, insuspeito de amizades comunistas. Engenheiro de profissão, o ‘comandante Pereira’ passara pelo Governo de Salazar, gerira fundos ocultos em abundância e fizera carreira nos negócios e na espionagem, sobretudo em África. Antes, e no pós-revolução, estivera ligado a serviços secretos ocidentais, traficando informação e valores de toda a índole e proveniência. O conluio para rebaixar o arcebispo envolvera ainda o major Sanches Osório, espécie de embaixador itinerante do MDLP, e outros servidores civis e militares da contrarrevolução. A história tornou-se credível aos olhos do País tenso, a ver conspirações em cada esquina. A desonra feita a D. Francisco levantou a efervescência que faltava. ‘A denúncia falsa foi nossa para lhe provocar a reação que ele veio a ter, que foi convocar a manifestação de Braga [a 10 de agosto de 1975]’, assumiu o antigo ministro da Comunicação Social ao jornalista João Paulo Guerra. ‘Depois explicámos-lhe o assunto e pedimos-lhe desculpa. E o arcebispo de Braga absolveu-nos.’ Até ali renitente em envolver a Igreja numa cruzada anticomunista às escâncaras, o clérigo tinha agora o pretexto do enxovalho para passar à ação. A mudança de atitude vinha a propósito. Em Madrid, Jorge Jardim, Sanches Osório e o editor Paradela de Abreu haviam materializado a ideia de criar um movimento que arrastasse a Igreja e os seus fiéis para o terreno onde se jogava, segundo eles, a defesa do «cristianismo», do «patriotismo» e da «liberdade».

Miguel Carvalho, Quando Portugal ardeu (2017) – Oficina do Livro 2022, pp 135-137.

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