terça-feira, 10 de outubro de 2023

Reflexão: Como se gasta tanta água no Algarve?

Na Quinta do Lago, o consumo de água é dez vezes superior à média nacional. É na região algarvia que encontramos os maiores consumos de água, em média diária, no setor doméstico de Portugal continental. Resorts como o da Quinta do Lago, Vale do Lobo ou Vilamoura batem em centenas de litros outras regiões do país, mas garantem que são dos mais eficientes a operar em Portugal.

De acordo com dados de 2021, disponíveis no mais recente relatório da Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos, é a Infraquinta, a entidade gestora responsável pela distribuição de água na Quinta do Lago, que regista o maior consumo médio diário doméstico, medido em número de litros por habitante: 1093 litros por dia. A ordem de grandeza não deixa de espantar, sobretudo quando o consumo diário doméstico por habitante, em Portugal continental, ficou em 2021 numa média de 127 litros diários.

A ONU recomenda que cada pessoa não ultrapasse os 110 litros diários de água por dia para suprir as suas necessidades. Há em Portugal casos de consumo abaixo deste número.

São exemplo a Câmara Municipal de Montalegre, com 47 litros de água em média por habitante/dia, da Câmara Municipal de Sabugal, com 49 litros, da Câmara de Vimioso, com 52 litros, ou da Câmara de Monforte, com 57 litros de média diária.

No extremo oposto, temos a já referida Infraquinta, com os seus 1093 litros, seguida pela Infralobo - que serve o empreendimento turístico algarvio de Vale do Lobo, a poucos quilómetros da Quinta do Lago - com uma média de 590 litros diários de consumo doméstico. Em terceiro lugar do ranking dos maiores consumidores domésticos vem a Águas de Santo André (no município de Santiago do Cacém), que assegura abastecimento e tratamento de águas na freguesia de Santo André e satisfaz as necessidades das indústrias na Zona Industrial e Logística de Sines, com um consumo médio diário de 264 litros de água por habitante. Logo no quarto posto regressamos ao Algarve, com os 208 litros diários atribuídos à Inframoura. E o top cinco fecha-se com os 188 litros diários da também algarvia Câmara de Lagoa, Faro. 

A título de exemplo, a EPAL, que abastece Lisboa, tinha em 2021 um consumo médio diário de 135 litros de água por habitante; a Águas e Energia do Porto chegava aos 133 litros de média diária, a Águas de Coimbra aos 142. Mas o que explica, então, o elevado consumo da Infraquinta, da Infralobo ou da Inframoura, que abastecem de água o chamado “triângulo dourado” do turismo algarvio?

Na Quinta do Lago há cinco campos de golfe e nenhum deles é regado com água potável distribuída pela Infraquinta. Pedro Pimpão, presidente do Conselho de Administração da entidade abastecedora da Quinta do Lago, diz que dos 40 campos de golfe que existem no Algarve, o campo de São Lourenço, na Quinta do Lago, é um dos poucos que já é regado apenas com águas provenientes das ETARs. Na Quinta do Lago, acrescenta, é feita retenção da água das chuvas nos lagos e essa água é utilizada, por exemplo, para regar campos de golfe, além das águas dos furos. “E vamos ter fortes investimentos na água residual tratada, que vai para jardins ou para o golfe, ou seja, haverá ainda uma maior diminuição da utilização da água que é para consumo humano”.

Segundo o Plano Regional de Eficiência Hídrica do Algarve, da Agência Portuguesa do Ambiente, com data de julho de 2020, do volume total de água captado na região algarvia, 34% foi para consumo urbano, 56,8% para consumo agrícola e 6,4% para campos de golfe. O documento detalha ainda que ao chamado "cluster turismo", que engloba algum consumo de água urbano e os consumos do golfe, corresponde um consumo total de 11,7% da água captada.

“Os grandes consumos de água estão noutros sectores, não propriamente no sector doméstico”, declara Sara Correia, ambientalista da associação ZERO que desenvolve trabalho na área de resíduos urbanos e recursos hídricos. Mas, para a especialista, há uma explicação para a grande diferença de consumos médios registados nas algarvias Infraquinta e Infralobo. “As pessoas, ali, não estão motivadas para reduzir consumos”, atira. “São pessoas de capacidade económica elevada, pelo que reduzir os custos não será preocupação”, acrescenta. “Mas a Infraquinta e a Infralobo não são das entidades gestoras que têm perdas mais elevadas. Há municípios que andam seguramente acima dos 50% de perdas”, refere, defendendo que o consumo não é o único problema na equação da sustentabilidade.

“Temos municípios com perdas de 70 a 80% de água. São normalmente municípios com sistemas de distribuição antigos, canalizações antigas, roturas com frequência, entidades gestoras pequenas mas que gerem uma área muito grande e não têm capacidade para fazer essa gestão”, explica. “Não têm uma cobertura de custos com o serviço que lhes permita fazer investimentos na rede de distribuição para reduzir essas perdas.” 

Em Portugal, há cerca de 230 entidades gestoras que podem ser municípios, serviços municipalizados ou intermunicipalizados, empresas municipais, concessionárias ou empresas constituídas em parceria com o Estado. 

Sara Correia lembra ainda que as entidades gestoras que não tenham boa taxa de cobertura de custos têm maiores dificuldades em aceder a apoios dos fundos comunitários e a situação torna-se “uma bola de neve: se não há apoios, não fazem investimento. Sem investimento, as perdas de água vão sendo cada vez maiores”.  

Sobre a chamada água não faturada, que representa as perdas, a especialista da ZERO assinala também que o volume de água contabilizado nesta categoria inclui muitas vezes “água que é oferecida a escolas ou bombeiros, por exemplo”, e não é medida nem faturada - mas não quer dizer que seja sempre desperdiçada. “Talvez as perdas reais sejam num valor consideravelmente mais baixo, mas esta água oferecida deveria também ser medida e faturada, nem que fosse a custo zero, porque assim havia registo. Também há falhas nesse apuramento da perdas”, resume. 

“A nível de eficiência, no consumo da água que foi captada, tratada e distribuída, as perdas serão talvez o maior problema que temos”, diz Sara Correia. “E não basta substituir condutas, reparar fugas. É preciso que as entidades gestoras tenham capacidade para gerirem as suas redes”, afirma. 

O preço será uma das últimas preocupações, por exemplo, dos residentes na Quinta do Lago ou em Vale do Lobo. “Em casa, estamos sempre a pensar como reduzir o consumo porque isso reflete-se na fatura mensal. Nos espaços turísticos não há essa preocupação”, diz Sara Correia. “E mesmo no consumo a nível doméstico, não há muito que possamos fazer além das campanhas de sensibilização. As medidas tomadas quando há situações de seca, que impedem a lavagem de carros ou rega de espaços verdes, na prática, não se traduzem numa redução que seja muito visível porque os grandes consumos estão noutros sectores”, repete. 

Sara Correia defende que Portugal tem de ser mais eficiente sobretudo no consumo de água do sector agrícola, que representa consumos na ordem dos 70% do volume total. “É para esse sector que temos de olhar com atenção e aplicar medidas que possam aumentar a eficiência. O grande problema, na ótica da associação, reside essencialmente no tipo de culturas que se fazem, não só no Algarve mas também noutras zonas do país. “No Alentejo e no Algarve faz-se agricultura de regime intensivo, é necessário regar plantações que são permanentes, culturas permanentes, que necessitam de água em quantidade ao longo de todo o ano. Isso não é ser eficiente”, aponta. As culturas de citrinos e abacate no Algarve, o olival e amendoal intensivos no Alentejo, o  constante alargamento dos perímetros de rega da barragem do Alqueva, são alguns dos problemas que a ZERO tem apontado para os consumos de água excessivos. “Quando se fala em seca, fala-se de medidas muito viradas para o sector urbano, muito direcionadas para o utilizador doméstico, quase a responsabilizar os utilizadores domésticos pelos grandes consumos”, refere. “Não estamos a olhar para o problema da forma que ele exige.”

No resort de Vale do Lobo, um “mundo à parte” apresentado no site como “destino obrigatório para residentes e turistas que prezam a beleza natural e o clima caloroso da região do Algarve”, a fatura média da água a pagar à Infralobo ronda os 180 euros por mês. 

“Vale do Lobo ocupa uma vasta área de 450 hectares e conta com cerca de 1.500 propriedades já concluídas, dois campos de golfe de 18 buracos, Spa/ Fitness Centre, uma Academia de Ténis e uma diversidade de infraestruturas e serviços numa localização única junto ao mar”, lê-se no site do empreendimento algarvio em Almancil (Loulé). Segundo os dados da ERSAR, a Infralobo, que garante o abastecimento de água em Vale do Lobo, regista um consumo médio diário de 590 litros.

Carlos Manso, presidente do Conselho de Administração da Infralobo, garante porém que os consumos da empresa (detida em 51% pela Câmara Municipal de Loulé e em 49% pela Vale do Lobo RTL S.A) representavam em 2021 apenas 1,96% de toda a água importada e vendida pela Águas do Algarve às entidades gestoras da região. Em 2015, este número fixava-se nos 2,32%, sendo que a diminuição do peso no todo regional foi fruto da eficiência hídrica dos seus processos, defende o responsável. 

Carlos Manso assinala ainda que os consumos anuais da Infralobo, que rodam os 1.406.802 m3, são inferiores à água não faturada de vários municípios da região do Algarve e diz que é “injusto” comparar as médias em bruto do consumo doméstico dos seus clientes com os consumos de famílias que moram em pequenos apartamentos lisboetas, por exemplo. “Tem a ver com as características do nosso cliente”, explica. “Estamos a falar, tipicamente, de moradias de dimensões relevantes, com dois mil metros quadrados, três mil metros quadrados de terreno, jardins.” 

A Infralobo tem cerca de 2500 clientes com consumos regulares e elevados. “Os nossos clientes serão sempre afetados pelo facto de terem propriedades grandes. Mas se pegarmos só nesse indicador e considerarmos que esse é o mal da falta de água no Algarve, é um erro. Estamos a falar de entidades, da Infralobo e da Infraquinta que, do ponto de vista da eficiência hídrica, são uma referência a nível nacional”, sublinha Carlos Manso. “Posso dizer-lhe que não conseguimos ter acesso a fundos comunitários porque somos demasiado eficientes”, atira, numa crítica velada aos critérios definidos pela ERSAR.

Seguindo nas demonstrações de eficiência hídrica da Infralobo, que passa com excelentes notas em quase todos os parâmetros - menos no óbvio, do consumo excessivo - Carlos Manso revela que o sistema tem uma telemetria ao nível da análise dos consumos, que permite sinalizar consumos abusivos e identificar eventuais fugas de água em tempo real. “Fazemos a gestão de 22 hectares de espaços verdes. Há um dado estatístico que diz que a eficiência na rega pública ronda os três a cinco litros por metro quadrado, nós conseguimos 3,2 litros por metro quadrado por dia. Estamos no limite inferior”, sublinha. 

E os campos de golfe? “São regados por furo. Os nossos dados de consumo são de sector urbano. Não fornecemos água para rega de campos de golfe”, remata. 

Frederico Brion Sanches, membro da direção do Conselho Nacional da Indústria do Golfe, garante que o setor se preocupa com cada metro cúbico de água gasta para regar os campos. “Não nos transformem no bicho mau de tudo isto”, diz em tom grave à CNN Portugal. “Tem havido um grande esforço da indústria do golfe e dos proprietários”, garante, acrescentando que, nesta altura, já há quatro campos de golfe algarvios que são regados quase exclusivamente com recurso à chamada água ApR (Água para Reutilização), ou seja, água residual tratada. 

O responsável do CNIG diz mesmo que a manutenção e a preparação de um campo de golfe é equivalente a uma atividade agrícola convencional, mas que os consumos de água não podiam ser mais díspares, recordando que a indústria do golfe, segundo o Plano de Eficiência Hídrica do Algarve, é responsável por consumos na ordem dos 6%, e que a agricultura leva 50% da água mas tem perdas a rondar os 28%.

Seguindo na análise dos números, Frederico Brion Sanches revela que no Algarve existem 40 campos de golfe, alguns de nove buracos, mas a maioria com 18 buracos, a uma média de 60 hectares por campo, nos quais apenas 60 a 70% da área é regada. Estes campos consomem anualmente entre 13 a 15 milhões de m3 de água para rega, dos quais uma parte ainda significativa é água da chuva ou de drenagem acumulada ou recuperada nos lagos construídos para o efeito nos campos. “A maioria do campos dispõe de lagos naturais ou artificiais que funcionam como reservatórios de captação e reserva de água”, explica também. 

 “As lontras tinham desaparecido da Quinta do Lago, com os campos de golfe voltaram. E também aconteceu com a galinha-sultana ou com peixes como o apara-lápis”, realça o responsável. Brion Sanches diz também que o sector está disponível para investir em soluções de rega cada vez mais eficientes e amigas do ambiente, mas lembra que ainda estão a recuperar da derrapagem do turismo durante a pandemia. “Um campo de golfe não é um negócio infinito. Atrai muita gente, movimenta muito dinheiro, mas não sobram resultados líquidos extraordinários. Exige um investimento permanente em máquinas, novas tecnologias. O custo da água é um factor muito importante”, admite. 

O CNIG defende que a ligação às ETARs para recurso a águas reutilizadas ou a dessalinização podem ser soluções para resolver o problema dos consumos de água no Algarve, mas aguarda decisões governamentais na matéria. “Seria fundamental resolver alguns obstáculos, como o custo da água reciclada, as distâncias da ETAR ao potencial utilizador, a qualidade da água reciclada e a possibilidade de uso misto de água reciclada e proveniente de barragens ou furos, para que aumente o número de campos com acesso a esta solução”, frisa a direção do organismo da indústria do golfe.

Sara Correia, da ZERO, concorda que existe caminho para aumentar a reutilização da água. “Estamos com uma taxa de reutilização que não chega sequer aos 2%, deve estar em 1,2% ou 1,3% e temos grande potencial para a aumentar. Temos imensas ETARs no nosso litoral e podemos reutilizar esta água seja para campos de golfe, agricultura, lavagem de ruas, contentores, rega de espaços verdes, salvaguardando sempre a saúde pública. O ministro do Ambiente já disse que queria aumentar esta taxa para 20%, mas ao ritmo a que estamos, não será certamente nos próximos anos, se continuarmos sem fazer nada”, lamenta. 

Para a ambientalista, a dessalinização será sempre uma “solução de último recurso”: antes, é preciso apostar na eficiência. “A dessalinização não é isenta de impactos para o ambiente, a água que for dessanlinizada será sempre mais cara do que a que temos e é preciso saber quem estará disponível para pagar mais caro”, declara.

“E depois temos a salmoura que sobra da produção dessa água, que tem de ter um destino final. Se a vamos libertar no oceano, tem impactos no local onde for descarregada. Por isso tivemos uma série de municípios a dizer que querem água dessalinizada mas nenhum quer lá a dessalinizadora para lidar com os resíduos”, diz Sara Correia. 

Os dados mais recentes do Instituto Português do Mar e da Atmosfera mostram que, em agosto, apenas 3% do país não estava em situação de seca e que 27,1% do território nacional estava mesmo em seca extrema - incluindo-se aqui praticamente toda a região do Algarve e Alentejo. E se os dados da ERSAR indicam que o consumo médio de água a nível nacional tem ficado, nos últimos anos, entre os 120 e os 130 litros por habitante por dia, Sara Correia lembra que aqui falamos apenas do consumo doméstico: se dividirmos pelos habitantes de Portugal continental toda a água utilizada no sector doméstico e agrícola, a média per capita sobe para os 186 litros, detalha a especialista.

Um número que faz pensar, sobretudo quando a Organização Mundial de Saúde estima que as necessidades básicas do indivíduo, entre cozinhar, higiene pessoal e higiene da casa, sejam perfeitamente satisfeitas com 50 a 100 litros de água por dia.

Bárbara Cruz, CNN Portugal

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