Na Quinta do
Lago, o consumo de água é dez vezes superior à média nacional. É na região
algarvia que encontramos os maiores consumos de água, em média diária, no setor
doméstico de Portugal continental. Resorts como o da Quinta do Lago, Vale do
Lobo ou Vilamoura batem em centenas de litros outras regiões do país, mas
garantem que são dos mais eficientes a operar em Portugal.
De acordo com
dados de 2021, disponíveis no mais recente relatório da Entidade Reguladora dos
Serviços de Águas e Resíduos, é a Infraquinta, a entidade gestora responsável pela distribuição de água na Quinta do
Lago, que regista o maior consumo médio diário doméstico, medido em número de
litros por habitante: 1093 litros por dia. A ordem de grandeza não deixa de
espantar, sobretudo quando o consumo diário doméstico por habitante, em
Portugal continental, ficou em 2021 numa média de 127 litros diários.
A ONU
recomenda que cada pessoa não ultrapasse os 110 litros diários de água por dia
para suprir as suas necessidades. Há em Portugal casos de consumo abaixo deste
número.
São exemplo a
Câmara Municipal de Montalegre, com 47 litros de água em média por
habitante/dia, da Câmara Municipal de Sabugal, com 49 litros, da Câmara de
Vimioso, com 52 litros, ou da Câmara de Monforte, com 57 litros de média
diária.
No extremo
oposto, temos a já referida Infraquinta, com os seus 1093 litros, seguida
pela Infralobo - que serve o empreendimento
turístico algarvio de Vale do Lobo, a poucos quilómetros da Quinta do Lago -
com uma média de 590 litros diários de consumo doméstico. Em terceiro lugar do
ranking dos maiores consumidores domésticos vem a Águas de Santo André (no
município de Santiago do Cacém), que assegura abastecimento e tratamento de
águas na freguesia de Santo André e satisfaz as necessidades das indústrias na
Zona Industrial e Logística de Sines, com um consumo médio diário de 264 litros
de água por habitante. Logo no quarto posto regressamos ao Algarve, com os 208
litros diários atribuídos à Inframoura. E o top cinco fecha-se com os 188
litros diários da também algarvia Câmara de Lagoa, Faro.
A título de
exemplo, a EPAL, que abastece Lisboa, tinha em 2021 um consumo médio diário de
135 litros de água por habitante; a Águas e Energia do Porto chegava aos 133
litros de média diária, a Águas de Coimbra aos 142. Mas o que explica,
então, o elevado consumo da Infraquinta, da Infralobo ou da Inframoura, que
abastecem de água o chamado “triângulo dourado” do turismo algarvio?
“Os grandes
consumos de água estão noutros sectores, não propriamente no sector doméstico”,
declara Sara Correia, ambientalista da associação ZERO que desenvolve trabalho
na área de resíduos urbanos e recursos hídricos. Mas, para a especialista, há
uma explicação para a grande diferença de consumos médios registados nas
algarvias Infraquinta e Infralobo. “As pessoas, ali, não estão motivadas para
reduzir consumos”, atira. “São pessoas de capacidade económica elevada, pelo
que reduzir os custos não será preocupação”, acrescenta. “Mas a Infraquinta e a
Infralobo não são das entidades gestoras que têm perdas mais elevadas. Há
municípios que andam seguramente acima dos 50% de perdas”, refere, defendendo
que o consumo não é o único problema na equação da sustentabilidade.
“Temos
municípios com perdas de 70 a 80% de água. São normalmente municípios com
sistemas de distribuição antigos, canalizações antigas, roturas com frequência,
entidades gestoras pequenas mas que gerem uma área muito grande e não têm
capacidade para fazer essa gestão”, explica. “Não têm uma cobertura de custos
com o serviço que lhes permita fazer investimentos na rede de distribuição para
reduzir essas perdas.”
Em Portugal,
há cerca de 230 entidades gestoras que podem ser municípios, serviços
municipalizados ou intermunicipalizados, empresas municipais, concessionárias
ou empresas constituídas em parceria com o Estado.
Sara Correia
lembra ainda que as entidades gestoras que não tenham boa taxa de cobertura de
custos têm maiores dificuldades em aceder a apoios dos fundos comunitários e a situação
torna-se “uma bola de neve: se não há apoios, não fazem investimento. Sem
investimento, as perdas de água vão sendo cada vez maiores”.
Sobre a
chamada água não faturada, que representa as perdas, a especialista da ZERO
assinala também que o volume de água contabilizado nesta categoria inclui
muitas vezes “água que é oferecida a escolas ou bombeiros, por exemplo”, e não
é medida nem faturada - mas não quer dizer que seja sempre desperdiçada.
“Talvez as perdas reais sejam num valor consideravelmente mais baixo, mas esta
água oferecida deveria também ser medida e faturada, nem que fosse a custo
zero, porque assim havia registo. Também há falhas nesse apuramento da perdas”,
resume.
“A nível de
eficiência, no consumo da água que foi captada, tratada e distribuída, as
perdas serão talvez o maior problema que temos”, diz Sara Correia. “E não basta
substituir condutas, reparar fugas. É preciso que as entidades gestoras tenham
capacidade para gerirem as suas redes”, afirma.
O preço será
uma das últimas preocupações, por exemplo, dos residentes na Quinta do Lago ou
em Vale do Lobo. “Em casa, estamos sempre a pensar como reduzir o consumo
porque isso reflete-se na fatura mensal. Nos espaços turísticos não há essa
preocupação”, diz Sara Correia. “E mesmo no consumo a nível doméstico, não há
muito que possamos fazer além das campanhas de sensibilização. As medidas
tomadas quando há situações de seca, que impedem a lavagem de carros ou rega de
espaços verdes, na prática, não se traduzem numa redução que seja muito visível
porque os grandes consumos estão noutros sectores”, repete.
Sara Correia
defende que Portugal tem de ser mais eficiente sobretudo no consumo de água do
sector agrícola, que representa consumos na ordem dos 70% do volume total. “É
para esse sector que temos de olhar com atenção e aplicar medidas que possam
aumentar a eficiência. O grande problema, na ótica da associação, reside
essencialmente no tipo de culturas que se fazem, não só no Algarve mas também
noutras zonas do país. “No Alentejo e no Algarve faz-se agricultura de regime
intensivo, é necessário regar plantações que são permanentes, culturas
permanentes, que necessitam de água em quantidade ao longo de todo o ano. Isso não
é ser eficiente”, aponta. As culturas de citrinos e abacate no Algarve, o olival e amendoal intensivos no
Alentejo, o constante alargamento dos perímetros de rega da barragem do
Alqueva, são alguns dos problemas que a ZERO tem apontado para os consumos de
água excessivos. “Quando se fala em seca, fala-se de medidas muito viradas para
o sector urbano, muito direcionadas para o utilizador doméstico, quase a
responsabilizar os utilizadores domésticos pelos grandes consumos”, refere.
“Não estamos a olhar para o problema da forma que ele exige.”
No resort de Vale do Lobo, um “mundo à parte” apresentado no site
como “destino obrigatório para residentes e turistas que prezam a beleza
natural e o clima caloroso da região do Algarve”, a fatura média da água a
pagar à Infralobo ronda os 180 euros por mês.
“Vale do Lobo
ocupa uma vasta área de 450 hectares e conta com cerca de 1.500 propriedades já
concluídas, dois campos de golfe de 18 buracos, Spa/ Fitness Centre, uma
Academia de Ténis e uma diversidade de infraestruturas e serviços numa
localização única junto ao mar”, lê-se no site do empreendimento algarvio em
Almancil (Loulé). Segundo os dados da ERSAR, a Infralobo, que garante o
abastecimento de água em Vale do Lobo, regista um consumo médio diário de 590
litros.
Carlos Manso,
presidente do Conselho de Administração da Infralobo, garante porém que os
consumos da empresa (detida em 51% pela Câmara Municipal de Loulé e em 49%
pela Vale do Lobo RTL S.A) representavam em 2021 apenas 1,96% de toda a água
importada e vendida pela Águas do Algarve às entidades gestoras da região. Em
2015, este número fixava-se nos 2,32%, sendo que a diminuição do peso no todo
regional foi fruto da eficiência hídrica dos seus processos, defende o
responsável.
Carlos Manso
assinala ainda que os consumos anuais da Infralobo, que rodam os 1.406.802 m3,
são inferiores à água não faturada de vários municípios da região do Algarve e
diz que é “injusto” comparar as médias em bruto do consumo doméstico dos seus
clientes com os consumos de famílias que moram em pequenos apartamentos
lisboetas, por exemplo. “Tem a ver com as características do nosso cliente”,
explica. “Estamos a falar, tipicamente, de moradias de dimensões relevantes,
com dois mil metros quadrados, três mil metros quadrados de terreno,
jardins.”
A Infralobo
tem cerca de 2500 clientes com consumos regulares e elevados. “Os nossos
clientes serão sempre afetados pelo facto de terem propriedades grandes. Mas se
pegarmos só nesse indicador e considerarmos que esse é o mal da falta de água
no Algarve, é um erro. Estamos a falar de entidades, da Infralobo e da
Infraquinta que, do ponto de vista da eficiência hídrica, são uma referência a
nível nacional”, sublinha Carlos Manso. “Posso dizer-lhe que não conseguimos
ter acesso a fundos comunitários porque somos demasiado eficientes”, atira,
numa crítica velada aos critérios definidos pela ERSAR.
Seguindo nas
demonstrações de eficiência hídrica da Infralobo, que passa com excelentes
notas em quase todos os parâmetros - menos no óbvio, do consumo excessivo -
Carlos Manso revela que o sistema tem uma telemetria ao nível da análise dos
consumos, que permite sinalizar consumos abusivos e identificar eventuais fugas
de água em tempo real. “Fazemos a gestão de 22 hectares de espaços verdes. Há
um dado estatístico que diz que a eficiência na rega pública ronda os três a
cinco litros por metro quadrado, nós conseguimos 3,2 litros por metro quadrado
por dia. Estamos no limite inferior”, sublinha.
E os campos de
golfe? “São regados por furo. Os nossos dados de consumo são de sector urbano.
Não fornecemos água para rega de campos de golfe”, remata.
Frederico
Brion Sanches, membro da direção do Conselho Nacional da Indústria do Golfe, garante que o setor se preocupa com cada metro
cúbico de água gasta para regar os campos. “Não nos transformem no bicho mau de
tudo isto”, diz em tom grave à CNN Portugal. “Tem havido um grande esforço da
indústria do golfe e dos proprietários”, garante, acrescentando que, nesta
altura, já há quatro campos de golfe algarvios que são regados quase
exclusivamente com recurso à chamada água ApR (Água para Reutilização), ou
seja, água residual tratada.
O responsável
do CNIG diz mesmo que a manutenção e a preparação de um campo de golfe é
equivalente a uma atividade agrícola convencional, mas que os consumos de água
não podiam ser mais díspares, recordando que a indústria do golfe, segundo o
Plano de Eficiência Hídrica do Algarve, é responsável por consumos na ordem dos
6%, e que a agricultura leva 50% da água mas tem perdas a rondar os 28%.
Seguindo na
análise dos números, Frederico Brion Sanches revela que no Algarve existem 40
campos de golfe, alguns de nove buracos, mas a maioria com 18 buracos, a uma
média de 60 hectares por campo, nos quais apenas 60 a 70% da área é regada. Estes
campos consomem anualmente entre 13 a 15 milhões de m3 de água para rega, dos
quais uma parte ainda significativa é água da chuva ou de drenagem acumulada ou
recuperada nos lagos construídos para o efeito nos campos. “A maioria do campos
dispõe de lagos naturais ou artificiais que funcionam como reservatórios de
captação e reserva de água”, explica também.
“As lontras tinham desaparecido da Quinta do
Lago, com os campos de golfe voltaram. E também aconteceu com a galinha-sultana
ou com peixes como o apara-lápis”, realça o responsável. Brion Sanches diz
também que o sector está disponível para investir em soluções de rega cada vez
mais eficientes e amigas do ambiente, mas lembra que ainda estão a recuperar da
derrapagem do turismo durante a pandemia. “Um campo de golfe não é um negócio
infinito. Atrai muita gente, movimenta muito dinheiro, mas não sobram
resultados líquidos extraordinários. Exige um investimento permanente em
máquinas, novas tecnologias. O custo da água é um factor muito importante”,
admite.
O CNIG defende
que a ligação às ETARs para recurso a águas reutilizadas ou a dessalinização
podem ser soluções para resolver o problema dos consumos de água no Algarve,
mas aguarda decisões governamentais na matéria. “Seria fundamental resolver
alguns obstáculos, como o custo da água reciclada, as distâncias da ETAR ao
potencial utilizador, a qualidade da água reciclada e a possibilidade de uso
misto de água reciclada e proveniente de barragens ou furos, para que aumente o
número de campos com acesso a esta solução”, frisa a direção do organismo da
indústria do golfe.
Sara Correia,
da ZERO, concorda que existe caminho para aumentar a reutilização da água.
“Estamos com uma taxa de reutilização que não chega sequer aos 2%, deve estar
em 1,2% ou 1,3% e temos grande potencial para a aumentar. Temos imensas ETARs
no nosso litoral e podemos reutilizar esta água seja para campos de golfe,
agricultura, lavagem de ruas, contentores, rega de espaços verdes,
salvaguardando sempre a saúde pública. O ministro do Ambiente já disse que
queria aumentar esta taxa para 20%, mas ao ritmo a que estamos, não será
certamente nos próximos anos, se continuarmos sem fazer nada”, lamenta.
Para a
ambientalista, a dessalinização será sempre uma “solução de último recurso”:
antes, é preciso apostar na eficiência. “A dessalinização não é isenta de
impactos para o ambiente, a água que for dessanlinizada será sempre mais cara
do que a que temos e é preciso saber quem estará disponível para pagar mais
caro”, declara.
“E depois
temos a salmoura que sobra da produção dessa água, que tem de ter um destino
final. Se a vamos libertar no oceano, tem impactos no local onde for
descarregada. Por isso tivemos uma série de municípios a dizer que querem água
dessalinizada mas nenhum quer lá a dessalinizadora para lidar com os resíduos”,
diz Sara Correia.
Os dados mais recentes do Instituto Português do Mar e da
Atmosfera mostram que, em agosto, apenas 3% do país não estava em situação de
seca e que 27,1% do território nacional estava mesmo em seca extrema -
incluindo-se aqui praticamente toda a região do Algarve e Alentejo. E se os
dados da ERSAR indicam que o consumo médio de água a nível nacional tem ficado,
nos últimos anos, entre os 120 e os 130 litros por habitante por dia, Sara
Correia lembra que aqui falamos apenas do consumo doméstico: se dividirmos
pelos habitantes de Portugal continental toda a água utilizada no sector
doméstico e agrícola, a média per capita sobe para os 186 litros,
detalha a especialista.
Um número que faz pensar, sobretudo quando a Organização Mundial de Saúde estima que as necessidades básicas do indivíduo, entre cozinhar, higiene pessoal e higiene da casa, sejam perfeitamente satisfeitas com 50 a 100 litros de água por dia.
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