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quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Bico calado

"Sento-me frente ao computador, nesta terça-feira dia 17 de outubro de 2023, para cumprir a obrigação profissional de escrever um artigo sobre atualidade política. Passaram 11 dias sobre a crueldade cometida pelo Hamas em Israel - não há volta a dar, este terá de ser o tema do texto, caso contrário parece que vivo noutro mundo...

Vejo, no site do Diário de Notícias, o destinatário desse meu trabalho, as últimas notícias provindas da região, reunidas numa ligação que acompanha, minuto a minuto, o que se passa em Israel e na Palestina, desde a informação mais atual até à notícia mais antiga.

Começa neste título: "17.55 - Seis pessoas morreram num ataque aéreo a uma escola da agência da ONU em Gaza"...

Penso: "É melhor não me meter a condenar a morte de inocentes palestinianos ou sou logo acusado de estar a ser cúmplice de assassinos de crianças israelitas".

Outro título: "17.46 - "Mortos por bombardeamentos em Gaza chegam a 3000 desde o início da guerra"...

Penso: "A guerra não começou agora, mas se me ponho a lembrar isso vou ser acusado de estar a branquear o Hamas com esse "mas" e de querer tirar o direito a Israel de se defender. É melhor procurar outra abordagem".

Outro: "17.31 - "O lugar da Alemanha é ao lado de Israel", afirma Scholz"...

Penso: "Podia tentar explicar como a má consciência europeia sobre o Holocausto é usada há 75 anos por Israel para violar, sem penalização, o direito internacional, mas ainda dizem que sou um negacionista da perseguição secular aos judeus, por isso é melhor procurar outro ângulo".

Mais um: "16.55 - Netanyahu: "O mundo deve estar unido para derrotar o Hamas""

Penso: "Poderia desenvolver a explicação de como o próprio Netanyahu e seus aliados, com anos e anos de dura opressão sobre os palestinianos, tornaram o Hamas politicamente e militarmente mais forte, mas podem interpretar essa análise como uma justificação implícita do terrorismo. É melhor procurar outro tópico".

Volto a tentar: "16.44 - Paddy Cosgrave, CEO da Web Summit: "Peço desculpas profundamente"".

Penso: "Com que direito é que o embaixador e o Governo de Israel se mobilizam para boicotar um evento comercial realizado noutro país (e cujo Estado lhes presta toda a solidariedade), só porque o seu organizador falou em "crimes de guerra" cometidos em Gaza?... Bom, é melhor não ir por aí no meu texto ou ainda me boicotam a mim".

Prossigo: "16.41 - Ministério da Saúde de Gaza diz que hospitais praticamente colapsaram" e "15.56 - Autoridades de Gaza pedem à população que dê urgentemente combustível que tiver".

Penso: "O cerco a Gaza com corte de fornecimento de eletricidade, água e combustíveis a 2 milhões de pessoas não está a mobilizar a indignação política e mediática na intensidade proporcional adequada há que ocorreu com o ataque do Hamas. Podia fazer a comparação... Não! Estás louco!? Queres ser cuspido no meio da rua?"

Vejo: "15.47 - Hamas afirma que visita de Biden incentivará morte de palestinianos".

Penso: "Por acaso podia explicar que isto começou com os ingleses, ainda no século XIX, mas as pessoas, hoje em dia, não querem saber do que está na raiz dos problemas atuais, marcam a última fronteira do passado no dia da sua última indignação. Ninguém ia ler".

Uma última tentativa: "15.16 - Hamas anuncia morte de um dos seus comandantes em raide israelita".

Penso: "Podia alvitrar que desde 1947 os palestinianos têm o apoio reiterado da ONU a formarem um Estado em territórios que, entretanto, foram ocupados por Israel; por isso, têm igualmente direito a possuir um Exército para defender e recuperar esses territórios, tal como os israelitas têm direito a defender o seu território e as suas gentes. Mas, mais uma vez, os sacerdotes das redes sociais lançar-me-ão pragas bíblicas por estar a dar apoio a infiéis árabes..."

Desisto.

A ideia que a vida de um bebé palestiniano vale tanto como a vida de um bebé israelita é, nos dias que correm, uma ideia moralmente errada. Não sei como isto aconteceu, mas é a realidade. Mais vale tentar viver noutro mundo...

Respiro.

Giro a roda do rato e volto ao princípio da página que consulto no DN. Houve uma atualização: "18.59 - Centenas de mortos em ataque a hospital, dizem autoridades em Gaza".

Não, não se pode falar disto."

Pedro Tadeu, É possível falar da Palestina e de Israel? – DN 18out2023.

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