domingo, 19 de fevereiro de 2023

Bico calado

  • «O meu bisavô materno em criança era guardador de gansos em Grötzingen, uma vila na Suábia não muito longe de Estugarda. De uma família pobre, dois irmãos emigraram para os Estados Unidos, ele, o pequeno Fritz, com 14 anos, foi sozinho para Espanha trabalhar numa fábrica de cortiça na Catalunha. Estávamos nos anos dez do século XX e a fábrica pertencia a uma família de industriais alemães. Fritz era trabalhador. Cresceu, casou com uma bela catalã, voltou a emigrar, ainda mais para ocidente, e trouxe os seus conhecimentos e vontade de trabalhar para Portugal. Aqui fundou uma fábrica de cortiça que se tornaria a maior do sector nos anos 50 e décadas seguintes. Os irmãos Amorim, daquela que é hoje a família mais rica de Portugal, foram seus subempreiteiros nos anos 60 e no início dos anos 70. Ainda antes da revolução de Abril, a fábrica tinha mais de meio milhar de operários e um infantário, para as mães poderem levar as suas crianças, enquanto trabalhavam nas máquinas que faziam rolhas, bastões e painéis de cortiça exportados para todo o mundo. (...) o velho Fritz acabou por vender a fábrica. Fruto de uma longa vida de trabalho dos sete aos 70 anos, deixou a cada uma das suas filhas meia dúzia de casas e apartamentos no Algarve e em Lisboa. É aqui que começam os tempos modernos que são iguais aos antigos. A minha avó, sua filha, passou vinte anos como proprietária de casas arrendadas, que lhe davam prejuízo ou cujas rendas mal cobriam as despesas. Um dia, ainda Cavaco Silva era presidente da República, a pedido da minha avó já octogenária, fui falar com um seu inquilino, num apartamento espaçoso em Benfica, que lhe pedira que fizesse - e pagasse - algumas obras na cozinha. Era um funcionário público, já reformado, um senhor educado. Disse-lhe que as obras seriam feitas, mas perguntei se estaria de acordo com uma actualização da renda que era de 120 euros por mês por um T5. Respondeu-me, escandalizado, que não, que seria incomportável, que a sua reforma era de “só dois mil euros” mensais. Lembro-me de ter ficado estupefacto. Eu tinha 40 anos, ganhava pouco mais de mil euros e pagava 500 euros de renda por um T2 perto do Castelo (no mesmo prédio havia mais cinco apartamentos que, por junto, pagavam de renda menos do que eu sozinho). Este mês o governo anunciou uma série de medidas para combater a crise na habitação. Entre as dez principais, o Executivo vai impor um limite ao valor das rendas dos novos contratos de todas as casas que já estejam no mercado de arrendamento, mesmo que um inquilino saia e entre outro. O cálculo do limite dos aumentos vai basear-se no “objectivo do Banco Central Europeu para a inflação de 2%”. Isto, quando a inflação está - e deverá continuar - no quádruplo ou quíntuplo desse valor. Além disso, nos aumentos possíveis do ano passado, já foi contornada a lei que estabelecia a actualização das rendas por um valor indexado à inflação real, medida pelo Instituto Nacional de Estatística. As outras medidas previstas de combate à especulação imobiliária justificam-se plenamente, como o fim dos ‘vistos gold’. Esses, juntamente com outros incentivos fiscais a investidores, levaram não só a um aumento brutal do preço das casas, sobretudo em Lisboa e no Porto, como, bem pior, à entrada de pessoas que compraram com dinheiro de origens opacas e regimes políticos pouco recomendáveis (talvez por isso o governo se recuse a divulgar os dados exactos), o direito de residência num país da União Europeia. (...) O congelamento, ou, no caso actual, a redução do valor real das rendas, sempre permitiu aos governos fazer política social sem gastar dinheiro do erário público, tão necessário para reformas vitalícias de deputados, automóveis de grande cilindrada para os ministérios ou indemnizações milionárias para gestores de empresas controladas pelo Estado. O que regressa agora, com toda a força, é a expropriação lenta que recai, sobretudo, sobre a maioria dos pequenos proprietários, aqueles que investiram todas as suas poupanças de vida em imóveis (os verdadeiros capitalistas sempre preferiram investimentos directos nos mercados financeiros, na indústria e na grande distribuição). (...) Proteger as pessoas e assegurar o direito à habitação é uma prioridade tão importante como o direito à saúde, à educação e o acesso à justiça. Mas este governo, à semelhança da esmagadora maioria dos outros nos últimos 123 anos, prefere colocar a salvo as grandes fortunas, não tocar nos mercados financeiros, moldar a economia aos desejos da banca e dos grandes grupos, para, em tempos de crise, taxar a classe média que investiu, à sua pequena escala, no sector mais vulnerável à extorsão fiscal: o imobiliário. O velho Fritz morreu há 50 anos e a sua fortuna esvaiu-se numa ou duas gerações (nada dele herdei). O meu bisavô materno cometeu um erro: pensou e agiu como um pobre que ascendeu à classe média de proprietários. Em vez de comprar às filhas paredes e tectos (‘valores seguros’ em pedra, tijolo e cimento), devia ter usado o seu dinheiro para investir na banca como os seus antigos subempreiteiros, hoje bilionários. O bisneto teria agradecido. Ou talvez não.» Miguel Szymanski.
  • Estivadores de Génova alertaram para o facto de uma operação de tráfico de armas estar a ser realizada através do seu porto após a descoberta de tanques e armas a bordo do Bahri Jeddah, um navio da Arábia Saudita. A Itália tornou-se um importante centro de armas com destino à Ucrânia, levando à ação militante de sindicalistas para bloquear o seu transporte. No mês passado, uma greve de 24 horas dos trabalhadores do porto de Génova viu sindicalistas levantando uma bandeira com o slogan: "Nem um cêntimo, nem uma espingarda, nem um soldado para a guerra". Os trabalhadores do aeroporto de Pisa recusaram-se a carregar um avião depois de terem descoberto armas em caixas rotuladas como ajuda humanitária. Foram levantadas questões no parlamento italiano sobre o engano. O sindicato USB apelou a uma mobilização a 22 de Abril sob o lema "baixem as vossas armas, aumentem os vossos salários". O sindicado diz que os trabalhadores estão a carregar o fardo da guerra na Ucrânia e apelou a uma ação governamental em matéria de emprego, salário, pensões e habitação. A Itália é agora o sexto maior fabricante de armas do mundo e concordou em aumentar as despesas militares de 1,4% do PIB para 2% do PIB, conforme estipulado pela NATO. Labor Today/UNAC.

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