sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Bico calado

Desde que a lei de venda de terras agrícolas entrou em vigor há um ano, três grandes empresas transnacionais americanas adquiriram quase um terço das terras agrícolas da Ucrânia. De acordo com a Australian National Review, os EUA possuem agora 17 dos 62 milhões de hectares da Ucrânia (área total do país).

Os proprietários são empresas americanas bem conhecidas como a Cargill, Dupont e Monsanto. O que é menos conhecido, porém, é que por detrás destes nomes famosos estão fundos de investimento - estruturas financeiras de agiotagem. Estas estruturas algo obscuras mas poderosas têm uma quantidade de capital em triliões de dólares. Entre os que operam na Ucrânia encontram-se a Vanguard, a Blackstone e Blackrock, com activos de dez, seis e 0,9 triliões de dólares, respetivamente.

Como e porquê a Ucrânia chegou a este ponto?

Quando o país fazia parte da União Soviética, a terra pertencia ao Estado através dos kolkhozes. Após o desaparecimento da União Soviética, os camponeses, empregados dos kolkhozes, receberam as terras do Estado que tinham cultivado em regime de arrendamento. Posteriormente, o estatuto desta terra foi alterado e, após longos procedimentos administrativos, tornou-se propriedade plena dos antigos agricultores kolkhoz. Seguiu-se um curto período durante o qual a venda e compra de terrenos foram permitidas até 2001, ano em que foi decretada uma moratória que pôs fim a todas as transacções. Este estado de coisas continuou mais ou menos durante os vinte anos seguintes, até 2021.

Então, como não podiam vender nem comprar a terra, muitos antigos "kolkhozers", que se tinham tornado proprietários de terras após o desaparecimento da União Soviética, viram-se confrontados com a escolha de continuar a trabalhar a terra como antes ou alugá-la ao preço de 150 dólares por hectare por ano a "operadores", que tinham surgido do nada na sequência do desmembramento da União Soviética. Assim, à sombra da moratória, os "operadores" tornaram-se verdadeiros latifundiários, ou mesmo empresas agrícolas monopolistas. Desta forma, embora a terra continuasse a pertencer, pelo menos formalmente, aos antigos "kolkhozers", na realidade estava nas mãos de "operadores" privados, engrenagens importantes, se não essenciais, dada a importância demográfica da camponesa ucraniana - representando cerca de 30% da população do país - no sistema oligárquico à cabeça da Ucrânia.

Contudo, a questão da propriedade de terras agrícolas na Ucrânia permanecia por resolver. Cresceu o debate sobre se, para além da abolição da moratória sobre as transacções de terras agrícolas, os estrangeiros poderiam comprar terras na Ucrânia. A ideia foi-se instalando gradualmente à medida que o país se foi tornando cada vez mais aberto.

Volodimir Zelensky, ciente da questão, propôs submeter a questão através de um referendo. Durante as manifestações camponesas ele defendia alto e bom som que "a terra pertencia aos ucranianos" enquanto estigmatizava "os chineses e os árabes" que se preparavam, segundo ele, "para levar a nossa terra em carroças". O debate foi intenso e Zelensky, como um hábil manipulador, soube jogar com o sentimento popular para lhe dar um pendor nacionalista, chauvinista e até xenófobo.

Apesar da esmagadora oposição à abolição da moratória sobre a venda de terras agrícolas, insistiu-se na "justificação". Dizia-se que isto era necessário, porque tinha passado muito tempo desde a adopção desta medida sem que o parlamento ucraniano tivesse estabelecido um mecanismo suficientemente transparente para organizar a compra e venda de terrenos, tal como previsto na lei de 2001.

A este respeito, é importante mencionar que ao mesmo tempo as sondagens de opinião indicavam que 81% dos inquiridos eram contra a venda de terras a estrangeiros e apenas 13% apoiavam a abordagem defendida pelo governo. Além disso, dois terços dos inquiridos consideravam que uma decisão tão importante deveria ser sujeita a consulta por referendo, enquanto mais de metade (58%) considerava que as terras agrícolas deveriam continuar a ser propriedade do Estado, como no Canadá e em Israel.

Finalmente, foi o relatório de abril de 2021 do Fundo Monetário Internacional, o maior credor da Ucrânia, que resolveu a questão ao tornar a abolição da moratória uma condição sine qua non para a atribuição de um novo pacote de crédito à Ucrânia. E o governo ucraniano obedeceu, contra a opinião esmagadora do seu poco. A partir daí, os "operadores" passaram a ter liberdade para entregar os terrenos que tinham sob gestão a "investidores estrangeiros". Antes de o fazerem, tiveram de adquirir a terra, como a lei agora lhes permitia, a "pequenos proprietários" ex-kolkhozianos. A operação foi realizada sem problemas, como o demonstra o atraso entre a aprovação da lei pelo parlamento e a sua implementação - ou seja, a aquisição pelas empresas americanas - e obviamente trouxe muito dinheiro para alguns bandidos próximos das autoridades de Kiev.

Assim, após a criação de cerca de trinta laboratórios biológicos americanos em todo o seu território, a Ucrânia acrescentou uma dimensão extra ao seu alinhamento atlântico, vendendo em massa as suas terras agrícolas a empresas transnacionais sob a tutela de fundos de investimento americanos. Embora os laboratórios biológicos ainda não tenham revelado seus segredos, no que diz respeito às terras agrícolas, as coisas parecem ser mais fáceis de explicar respondendo à pergunta: o trigo exportado da Ucrânia é americano?

Alain Jejcic, Le blé ukrainien est-il américain? - Arrêt sur Info.

Sem comentários: