quinta-feira, 4 de março de 2021

Reflexão - Como um tratado assinado em 1994 sobrecarrega a transição ecológica


O Tratado da Carta da Energia (TCE) é uma ferramenta muito útil para investidores e empresas de combustíveis fósseis: os seus mecanismos servem para dissuadir ou sancionar autoridades públicas que adotem medidas favoráveis ao combate ao aquecimento global. Por causa dele, qualquer país que queira proibir projetos de perfuração ou mineração está sujeito a reivindicações e indemnizações.

Segundo investigação do grupo de jornalistas do Investigate Europe, as infraestruturas fósseis protegidas pelo TCE na União Europeia, Grã-Bretanha e Suíça representam 344,6 mil milhões de euros, o dobro do orçamento anual da UE. Três quartos dos investimentos protegidos são infraestruturas de gás e petróleo (126 mil milhõe de euros) e oleodutos (148 mil milhões).

Assinado em 17 de dezembro de 1994, o TCE entrou em vigor em 1998 e agrega 53 países, incluindo a União Europeia (UE) - exceto a Itália, que se retirou em 2016 -, Japão, Austrália e a Turquia.

O tratado assenta num mecanismo de solução de conflitos entre investidores e estados, que permite às empresas processar um estado perante um tribunal arbitral privado. “Se eles pensam que uma política do governo está a prejudicar as suas atividades comerciais, os investidores podem contornar os tribunais nacionais”, diz Yamina Saheb. Ao fazê-lo, “o TCE protege os investidores estrangeiros no seu país anfitrião, concedendo-lhes proteção privilegiada, na forma de justiça privada que é muito mais favorável a eles do que os tribunais nacionais, e com poderes para ordenar aos governos que paguem milhares de milhões euros às empresas em questão ”, lamenta Amandine Van Den Berghe. Desde 1998, mais de 136 litígios conhecidos referem-se ao TEC, "66% dos quais são litígios intra-europeus", sublinha Yamina Saheb.

“Esta justiça paralela pode anular os objetivos do Acordo do Clima de Paris”, alerta Sara Lickel. “A indústria de combustíveis fósseis usa cada vez mais o TCE para desafiar a ação climática e continuar a lucrar com a combustão de petróleo, carvão e gás. "

Segundo a investigação do Investigate Europe, os investidores podem processar os governos não só pelo valor da sua infraestrutura, mas também pelo déficit esperado, o que aumenta drasticamente o custo das políticas climáticas. Além disso, o Investigate Europe demonstrou que a equipa sénior do TCE tem fortes laços com a indústria de combustíveis fósseis. Tanto é que ir à Justiça não é o único meio de pressão para os governos, já que “às vezes basta apenas acenar essa ameaça para dissuadir os decisorespolíticos de adotarem medidas ambiciosas”, denuncia Sara Lickel.

O que fazer com este tratado: transformá-lo ou sair dele? Desde 2019, a União Europeia e o secretariado do TEC negociam uma "modernização" do tratado. Três rondas de negociações ocorreram em 2020, e a próxima acontece entre 2 e 5 de março. Mas “é improvável que as negociações atuais sobre a modernização do TEC resultem num tratado compatível com o Acordo de Paris”, disse Yamina Saheb. Qualquer modificação do tratado requer o voto unânime de todos os países signatários, mas as posições dos Estados são muito díspares. Alguns, como o Japão, que investe imenso em carvão, vivem da venda dos combustíveis fósseis e opõem-se à reforma do tratado.

Um relatório do secretariado do TCE, divulgado em dezembro, mostra que não houve progresso nas negociações para modernizar o tratado. A próxima fase das negociações não é mais encorajadora. Bruxelas propõe continuar a proteger os projetos existentes e alguns novos investimentos em fósseis por mais dez anos, e estender a proteção dos investimentos ao hidrogénio e à biomassa. Mesmo dentro da União Europeia, as vozes divergem e não estão de acordo com a posição definida na Comissão, em particular sobre as fontes de energia a excluir da proteção do TCE.

Alguns estados, como França ou Espanha, não acreditam na modernização do tratado. A saída coordenada desejada pela França é necessária para poder cancelar a “cláusula de sobrevivência” do TCE. Esta cláusula estende a aplicação das disposições do TEC por um período de vinte anos, aos investimentos realizados no país que se retira do tratado. Mas "uma saída comum é improvável, já que a Europa está dividida nessa questão", afirma a juíza Amandine Van Den Berghe. A Alemanha está calada por enquanto, e o Luxemburgo considera que uma saída coletiva do TCE seria um fracasso diplomático.

Do lado da sociedade civil, cresce o descontentamento contra o tratado e a procrastinação dos diplomatas. Na terça-feira, 23 de fevereiro, dezenas de organizações europeias publicaram uma petição pedindo aos governos e instituições europeias que se retirassem do tratado e suspendessem o seu alargamento a novos países. Já há alguns meses, várias declarações e cartas de parlamentares europeus, cientistas, agentes do mercado das energias renováveis e até jovens de todo o mundo apelaram à UE e aos seus Estados-Membros para que se retirassem o Tratado da Carta da Energia.

Alexandre-Reza Kokabi, Reporterre.

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