Embora seja amplo o número de representantes das celuloses em cargos de governação, há figuras com destaque como Álvaro Barreto, Jorge Godinho ou Luís Todo Bom. Mas poucos têm papéis tão evidentes e claros na definição da arquitectura das políticas públicas florestais em momentos-chave como João Manuel Soares.
Se hoje é na imprensa que João Manuel Soares cumpre a sua
missão, durante a maior parte das últimas três décadas esteve entre o governo e
o grupo Navigator (Portucel-Soporcel), organizando de um lado a
disponibilização do território nacional para a eucaliptização e, do outro,
executando essa eucaliptização.
Até ao fim dos anos 80, Soares esteve na Administração
Pública, passando pela chefia da Divisão de Estudos Económicos do Instituto dos
Produtos Florestais até chegar à sua direcção e presidência, em 1985 e 1988. No
exercício destas últimas funções terá tido um papel importante no Programa de
Acção Florestal. Enquanto desempenhava cargos no Estado, participou no Comité
da Madeira da Comissão Económica para a Europa, na Comissão Europeia para as
Florestas, das Nações Unidas, no Comité Consultivo do Sector das Madeiras da
Comissão das Comunidades Europeias. O Instituto dos Produtos Florestais,
entidade de regulação económica, seria extinto em 1989, ocupando nessa altura
João Manuel Soares o lugar cimeiro na Direcção-Geral das Florestas. Foi chamado
para a chefia da Direcção-Geral pelo então ministro da Agricultura, Álvaro
Barreto, designado por Soares como o “meu último patrão público e o meu
«primeiro patrão privado». Em 1988 elaborou o “Pacote Florestal”, com a
primeira legislação para a plantação de espécies de crescimento rápido, isto é,
eucaliptos. No período de entrada de Portugal para a CEE, estava no sítio
certo. Em 1990 entra para a Portucel. Álvaro Barreto sairia também do governo
nessa altura, directamente para a Presidência do Conselho de Administração da empresa
de celulose.
No sector florestal, Soares actuou tanto nas áreas
técnicas como políticas. Entre 1997 e 1998 participou na elaboração do Livro
Verde da Cooperação Ensino Superior/Empresa. A nível internacional, foi
vice-presidente e depois presidente do Comité Florestal da Confederação
Europeia da Indústria Papeleira, entrando por essa via no Comité Consultivo da
Floresta e da Cortiça da Direcção-Geral de Agricultura da Comissão Europeia.
Mais tarde seria um dos fundadores do BCSD Portugal — Conselho Empresarial para
o Desenvolvimento Sustentável.
Após os incêndios florestais de 2003 (os maiores de
sempre, até 2017), foi chamado por Armando Sevinate Pinto, ministro da
Agricultura, para ocupar o cargo de secretário de Estado das Florestas no XV
Governo Constitucional, tendo exercido funções entre Outubro de 2003 e Julho de
2004, saindo com a demissão do primeiro-ministro Durão Barroso. Durante o seu
mandato, e como urgência, foi feita nova “reforma florestal”, criado um novo
quadro para o Sistema Nacional de Prevenção e Protecção da Floresta contra
Incêndios, o Fundo Florestal Permanente e a Agência para a Prevenção de
Incêndios Florestais. Soares tentou ainda fundir o Instituto de Conservação da
Natureza com a Direcção-Geral dos Recursos Florestais para retirar competências
à primeira entidade no licenciamento de plantações florestais. Esta proposta só
viria a passar em 2011, sob a ministra Assunção Cristas.
Acabado o mandato, saiu do Estado para a
Portucel-Soporcel, enquanto o seu “último patrão público”, Álvaro Barreto, saiu
da presidência da Portucel-Soporcel para ser ministro da Agricultura de Santana
Lopes. João Manuel Soares voltou para as celuloses, tendo exercido, ao longo de
mais de 20 anos, funções de direcção e administração em várias empresas:
Emporsil, Soporcel, Raiz, Portucel e Portucel-Soporcel. Entre 2009 e 2014 foi
cooptado para ser Presidente do Conselho de Escola do Instituto Superior de
Agronomia. O tom agressivo com que tem opinado nos tempos mais recentes parece
ser sinal de decrescente capacidade de influência nos corredores do Poder.
No entanto, num processo de ascensão para a posição de arquitecto está Tiago Martins Oliveira, actualmente no exercício de um cargo equiparado ao de secretário de Estado. Doutorado em Engenharia Florestal, este quadro da The Navigator Company preside à recém-criada Estrutura de Missão para a instalação do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais. Não é a primeira vez que este quadro das celuloses participa em governos. Pela mão de João Manuel Soares, Tiago Oliveira ingressou no governo de Durão Barroso como adjunto do secretário de Estado das Florestas. Já em 2005 entrou como assessor no gabinete de JaimeSilva, ministro da Agricultura de José Sócrates. Na altura, foi um dos técnicos que elaboraram o Plano Nacional de Defesa da Floresta contra Incêndios. Veio das celuloses, regressou às celuloses. Doze anos depois é novamente chamado ao exercício de funções públicas, por António Costa, primeiro-ministro. No discurso de Tiago Oliveira não há responsabilização de espécies nos incêndios em floresta. A responsabilidade deixa-a à gestão, ou à falta dela. É um discurso recorrente e incompleto, alimentando uma narrativa que vem de ainda antes de João Manuel Soares. Nunca se debruça sobre os condicionalismos à gestão, ao rendimento que a possa suportar. Claro, isso seria pôr em xeque a sua origem (e eventual futuro) profissional. Não é, pois, de estranhar a sua análise tecnicista, mas incompleta, na abordagem da problemática dos incêndios e, sobretudo, das florestas e do meio rural. Apesar disso, é sempre difícil negar a natureza do eucalipto, como o próprio Tiago Oliveira faz: “Trata-se de uma espécie florestal que reage bem ao fogo. Aquilo é uma árvore. Não pode ser considerada a culpada. Está a reagir ecologicamente àquilo que ela sabe fazer: está a regenerar, a sair das cinzas e a entrar no verde.” Há claras linhas vermelhas na sua intervenção em funções públicas, designadamente as que possam pôr em causa interesses da indústria da celulose. A abordagem da questão florestal através dos incêndios é um exercício perdedor, como tentar melhorar os resultados de uma equipa de futebol focando-se só no guarda-redes ou tentar controlar uma infecção apenas com antipiréticos. Pode controlar surtos febris, mas não controla a infecção. Dificilmente Tiago Oliveira terá sucesso na abordagem ao problema sem se imiscuir nas suas causas. Mas as causas estão para lá da linha vermelha da sua intervenção em funções públicas.
Em comum, para além do exercício de funções no mesmo
grupo empresarial ligado à produção de celulose, João Manuel Soares e Tiago
Martins Oliveira protagonizaram-se também enquanto subscritores, em 2011, de um
manifesto pela floresta contra a crise. Nesse manifesto, subscrito entre outras
personalidades pelo ex-Presidente da República Jorge Sampaio, era apontado o
valor “simplificado” da perda de mais de mil milhões de euros por ano devido
aos incêndios florestais em Portugal. Os “arquitectos” colocam-se sempre nos
locais estratégicos para estancar que as questões possam ser levadas até às
últimas consequências: será que ao volume anual bruto do negócio das celuloses
em Portugal não haveria que descontar este encargo social, para a determinação
do seu valor líquido para a Sociedade?
O “cimento”
O modelo é conhecido. Para desenvolver as vendas da
indústria farmacêutica, houve/há que influenciar o ensino e a investigação nas
Faculdades de Medicina. Para cimentar a sua influência mediática e política,
foi imprescindível às celuloses intervir directamente na academia, o que foi
naturalmente facilitado pelo desinvestimento crescente no Ensino Superior e na
Investigação. Não é por isso de estranhar a existência de uma sala “Portucel-Soporcel”no Instituto Superior de Agronomia ou de um “Laboratório Celtejo” naUniversidade da Beira Interior.
O nível de articulação entre uma parte da academia
portuguesa e a indústria das celuloses é relevante, como podemos reparar no
Instituto Raiz, de Investigação da Floresta e Papel, iniciativa financiada pela
The Navigator Company, que tem como parceiros a Universidade de Coimbra, a
Universidade de Aveiro ou o Instituto Superior de Agronomia, ou no
desenvolvimento de programas de ensino e formação conjuntos de universidades e
empresas como o Programa Doutoral em Biorrefinarias da Universidade de Aveiro,
Universidade de Coimbra, The Navigator Company e CELBI.
A ideia de que a empregabilidade e a inovação só podem ser
conseguidas através da estrita ligação entre as universidades e a indústria
alimenta a desuniversalização das universidades e a perda, em muitos casos, de
sentido crítico. A entrega do sentido da investigação e do estudo à orientação
de um determinado sector industrial reduz o conhecimento à técnica a aplicar em
determinados processos, amputando alternativas, privando alunos e
investigadores de amplitude e de múltiplas perspectivas. Infelizmente esta
privatização encapotada do ensino superior público é muitas vezes levantada
como bandeira pelos governos e celebrada. Assim tem sido com as celuloses.
Devem ainda chamar-nos particular atenção os “laboratórios colaborativos”, a nova maneira de o Estado patrocinar a ciência. Como exemplo acabado da porta aberta para entrega da Ciência à técnica, o Laboratório Colaborativo para a Gestão Integrada da Floresta e do Fogo “ForestWise”, que receberá financiamento público para estudar as dinâmicas da floresta e dos incêndios. Os parceiros deste laboratório de investigação? O INESC-TEC, o Instituto Superior de Agronomia, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, as Universidades de Évora, Coimbra e Aveiro, o Instituto Nacional de Investigação Agrária e Veterinária, o Instituto Português do Mar e da Atmosfera, a EDP, a REN, a Sonae Arauco, a Corticeira Amorim, a Europac, a Altri Florestal e a The Navigator Company. O lançamento do laboratório teve total pompa e circunstância, com a presença de Tiago Oliveira Martins, presidente da Estrutura de Missão para o Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, de Capoulas Santos, ministro da Agricultura e até do primeiro-ministro, António Costa.
No entanto, nenhuma porta fica por explorar. A Liga para
a Protecção da Natureza, mais antiga organização ambientalista de Portugal, que
teve entre as principais campanhas da sua história a oposição à eucaliptização
do país, recebeu recentemente o patrocínio da The Navigator Company num Jantar
de Gala e tem prevista uma parceria com a empresa de celulose a nível da
Educação Ambiental, “no âmbito da promoção da floresta sustentável”. A inclusão
de um dos principais arquitectos da eucaliptização de Portugal, João Manuel
Soares, numa das listas para a direcção da organização parece, no entanto, ter
sido a gota de água, tendo surgido, pela primeira vez na sua história, duas
listas de oposição.
Participando em todas as fases de concepção da “obra”, as celuloses conseguiram levantar o frágil edifício do engano, fazendo curto-circuitar os processos de escrutínio democrático, político, científico, mediático e social à sua actividade. Como se viu depois dos incêndios de 2017.
João Camargo, investigador em alterações climáticas, e
Paulo Pimenta de Castro, engenheiro silvicutor e presidente da Acréscimo -
Associação de Promoção ao Investimento Florestal, traçam as ligações entre
política, indústria das celuloses e academia.
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