sexta-feira, 27 de março de 2020

Bico calado

  • «(…) O que aconteceu nos últimos dias foi tão rápido e abrangente que parece que de repente entramos numa nova era. Há poucas semanas, ninguém ousaria prever que o mundo iria parar por causa de uma epidemia que, na verdade, não havia reivindicado mais do que um punhado de mortes entre a população mais vulnerável às condições respiratórias. Como é possível o mundo parar por causa de algumas mortes por gripe se 10.000 pessoas perdem a vida todos os dias porque não podem pagar a sua assistência médica? O mundo nunca parou por nada: nem antes da gripe comum, que ceifa a vida a centenas de milhares de pessoas todos os anos, nem contra a malária, que regista 200 milhões de casos e 400.000 mortes por ano, ou perante a fome - que uma em cada oito pessoas sofre na terra -, nem perante a miséria - que duas em três pessoas sofrem-, nem perante a migração - que força cada vez mais pessoas todos os dias a deixar a sua casa e pátria -, nem face à guerra - que afeta diretamente 11% da humanidade -, nem face à desigualdade - que faz com que um punhado de magnatas acumule mais fortuna que metade de toda a humanidade -, nem mesmo face à flagrante deterioração do planeta. Tudo isso faz parte da normalidade. (…) Então por que motivo o mundo parou desta vez? Penso que a resposta é que o coronavírus nos colocou frente a frente com um novo medo: o de nos expor a atravessar subitamente a fronteira que nos torna vítimas. Preocupamo-nos com os mortos quando somos nós. Por que motivo o mundo não parou quando a Grécia perdeu mais de 350.000 pessoas devido às medidas de austeridade da Troika? Pois é. Por incrível e vergonhoso que possa parecer, nunca sentimos esse medo quando falamos de guerras, migrantes, naufrágios, portadores de malária ou famintos; não sentimos esse medo quando falamos de cortes, despejos, suicídios, perda de conquistas e direitos nas nossas próprias pátrias. Tudo parece ser coisas que acontecem aos outros, coisas que acontecem do outro lado de uma fronteira tênue. O coronavírus desencadeou o medo, mostrando agora a fragilidade dessa fronteira; e deixou claro duas nódoas profundamente enraizados na nossa sociedade, que deveriam ser capitalizados: hipocrisia e cegueira. Preocupamo-nos com os mortos quando somos nós. Só então nós realmente os vemos. E se não é por isso, por que motivo o mundo - ou a União Europeia ou o Estado grego - parou nos anos em que a Grécia diminuiu demograficamente em mais de 350.000 pessoas devido às medidas de austeridade impostas pela Troika? Onde estavam as televisões e os grande media, que agora espreitam o último contágio, quando as pessoas cometem suicídio todos os dias, vivem nas ruas ou são expulsas de suas próprias casas? Onde estão agora que tudo isso ainda está acontecendo? Como é possível que aqueles que, ainda há pouco tempo, se gabavam de promover o desmantelamento dos serviços públicos e a alienação da riqueza nacional para cumprir os objetivos dos memorandos, sejam agora autoridades alertas, conscientes e mobilizadas para o bem comum? A Covid-19 está a mostrar-nos que o mundo deve parar para enfrentar os perigos. Que se pode parar. Que se pode realizar grandes e urgentes projetos coletivos. E que, se não o fizermos, será porque não quisemos. Porque, repetidas vezes, eles fizeram-nos acreditar que era impossível. E porque preferimos acreditar. Porque nem a nossa sociedade, nem os nossos governos, nem o nosso sistema jamais sentiram o verdadeiro medo que os levaria a enfrentar os grandes desafios, ao nível da empatia e da solidariedade. Oxalá que, a partir de agora, já cientes da fragilidade dessa fronteira que nos separa da condição de vítimas, aprendamos com o medo e, civilizadamente, decretamos o estado de alerta em nossas vidas.» Pedro Olalla (Escritor, helenista, cineasta, tradutor, professor, membro Associado do Centro de Estudos Helênicos da Universidade Harvard), in CTXT.

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