Bico calado
- Um close up das anotações do presidente Donald J. Trump mostra a palavra "Corona" substituída pelo "chinês", durante um encontro com a sua força-tarefa de coronavírus em resposta à pandemia e uma entrevista no James S Brady Press Briefing Room na Casa Branca. Via Common Dreams.
- «(…) Em cada época histórica, os modos dominantes de viver (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana. É verdade que eles se vão alterando paulatinamente, mas as mudanças passam quase sempre despercebidas. A irrupção de uma pandemia não se compagina com tal tipo de mudanças. Exige mudanças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis como se sempre o tivessem sido. Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo nos centros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que se quer mas só se pode obter por outros meios que não a compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternativas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela porta dos fundos das crises pandémicas, dos desastres ambientais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível. (…) O modo como foi inicialmente construída a narrativa da pandemia nos media ocidentais tornou evidente a vontade de demonizar a China. As más condições higiénicas nos mercados chineses e os estranhos hábitos alimentares dos chineses (primitivismo insinuado) estariam na origem do mal. Subliminarmente, o público mundial era alertado para o perigo de a China, hoje a segunda economia do mundo, vir a dominar o mundo. Se a China era incapaz de prevenir tamanho dano para a saúde mundial e, além disso, incapaz de o superar eficazmente, como confiar na tecnologia do futuro proposta pela China? Mas terá o vírus nascido na China? A verdade é que, segundo a Organização Mundial da Saúde, a origem do vírus ainda não está determinada. É, por isso, irresponsável que os meios oficiais dos EUA falem do “vírus estrangeiro” ou mesmo do “coronavírus chinês”, tanto mais que só em países com bons sistemas públicos de saúde (os EUA não são um deles) é possível fazer testes gratuitos e determinar com exactidão os tipos de influenza ocorridos nos últimos meses. Do que sabemos com certeza é que, muito para além do coronavírus, há uma guerra comercial entre a China e os EUA, uma guerra sem quartel que, como tudo leva a crer, terá de terminar com um vencedor e um vencido. Do ponto de vista dos EUA, é urgente neutralizar a liderança da China em quatro áreas: o fabrico de telemóveis, as telecomunicações da quinta geração (a inteligência artificial), os automóveis eléctricos e as energias renováveis.(…)» Boaventura Sousa Santos, in Vírus: tudo o que é sólido se desfaz no ar - Público 18mar2020.
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