sexta-feira, 24 de maio de 2019

Bico calado


A maldição da finança: como o poder descomunal da City of London torna a Inglaterra mais pobrepor Nicholas Shaxson, no The Guardian.

«Na década de 1990, eu era correspondente da Reuters e do Financial Times em Angola, um país rico em petróleo e diamantes que estava a ser dilacerado por uma guerra civil assassina. Os visitantes ocidentais pediam-me uma explicação para esta pergunta: como podiam os cidadãos de um país com enorme riqueza mineral ser tão miseráveis? Uma razão era a corrupção: uma elite que bebia champanhe e comia lagosta estava a tornar-se muito rica na capital, enquanto os seus compatriotas empobrecidos se massacravam nas províncias empoeiradas. (…)  Mais dinheiro pode fazer as pessoas mais pobres: é por isso que a maldição dos recursos também é às vezes conhecida como o Paradoxo da Pobreza a partir da Abundância.
Nos anos 1990, John Christensen, conselheiro económico oficial do paraíso fiscal britânico de Jersey, registava paralelos entre o que eu observava em Angola e o que ele via em Jersey. Um imenso setor financeiro da pequena ilha estava a tornar uma minoria riquíssima, enquanto muitos populares sofriam dificuldades extremas. Mas ele podia ver um paralelo ainda mais poderoso: a mesma coisa estava a passar-se na Grã-Bretanha. (…)
Em Angola, a entrada massiva da riqueza do petróleo aumentou os níveis locais de preços de bens e serviços, da habitação ao corte de cabelo. Esse ambiente de alta de preços provocou uma vaga de destruição na indústria local e na agricultura, a ponto de se tornar cada vez mais difícil competir com produtos importados. Da mesma forma, a entrada de dinheiro na City of London tem um efeito similar nos preços da habitação e nos níveis de preços locais, tornando mais difícil para os exportadores britânicos competirem com concorrentes estrangeiros. (…)
A City orgulha-se da sua contribuição para com a economia da Grã-Bretanha: 360 mil empregos bancários, 31 biliões de libras em receitas de impostos diretos em 2018 e um superavit comercial de serviços financeiros de 60 biliões. Os dados oficiais de 2017 mostraram que o londrino médio pagava £3.070 a mais em impostos do que recebia nos gastos públicos, enquanto nas zonas rurais mais pobres do país acontecia o contrário. (…)
Argumentar que a City prejudica a economia da Grã-Bretanha pode parecer loucura. Mas a investigação mostra cada vez mais que todo o dinheiro que circula à volta do nosso setor financeiro superdimensionado pode, de facto, estar a tornar-nos coletivamente mais pobres. À medida que a economia da Grã-Bretanha se reorganiza para servir as finanças, outras partes da economia lutam para sobreviver à sua sombra (…) Gerações de líderes desde Margaret Thatcher a Tony Blair e Theresa May acreditam que a City é a galinha dos ovos de ouro da Grã-Bretanha, para ser priorizada, mimada e protegida. Mas a análise da maldição financeira mostra que uma City sobredimensionada é uma ave diferente: um cuco no ninho, desembaraçando-se de outros setores. (…)
Há cada vez mais investigações económicas que confirmam que a partir do momento em que um setor financeiro cresce acima de um tamanho ótimo e ultrapassa os seus papéis úteis, ele começa a prejudicar o país que o hospeda. A origem mais óbvia dos prejuízos vem sob a forma de crises financeiras (…). Há muito tempo que o nosso setor financeiro superdimensionado começou a abandonar o apoio à criação de riqueza e a extraí-la de outras partes da economia. Para conseguir isso, ele manipula leis, regras, laboratórios de ideias e até mesmo a nossa cultura. Os resultados incluem menor crescimento económico, desigualdade mais acentuada, mercados distorcidos, aumento da criminalidade, mais corrupção, esvaziamento de setores económicos alternativos. (…) Segundo um artigo de Andrew Baker, da Universidade de Sheffield, Gerald Epstein, da Universidade de Massachusetts Amherst, e Juan Montecino, da Universidade de Columbia, uma grande City of London infligiu um impacto cumulativo de 4,5 triliões de libras à economia britânica entre 1995 e 2015. (…)
As taxas de investimento na economia não financeira do Reino Unido desde 1997 foram as mais baixas da OCDE (…). E na economia alegadamente “competitiva” de baixa tributação e alta finança, a produtividade da mão-de-obra é entre 20 e 25% menor do que a da Alemanha ou da França com impostos mais altos. Os recursos estão a ser mal alocados, já que o financiamento se tornou um fim em si mesmo, desligado da economia real e das pessoas e negócios reais que deveria servir. (…)
A partir dos anos 1970s, (…) os impostos foram reduzidos e setores das nossas economias foram privatizados. E as nossas empresas começaram a passar por uma transformação dramática: os seus objetivos principais foram reduzidos, através de mudanças ideológicas e mudanças nas leis e regras, para pouco mais do que a maximização da riqueza dos acionistas, os proprietários dessas empresas. Os diretores muitas vezes descobriram que a melhor maneira de maximizar a riqueza dos proprietários não era fabricar produtos e maquinarias melhores, nem encontrar novas curas para a malária, mas dedicarem-se à engenharia financeira. Que se lixasse o propósito social. Como se viu, a desigualdade aumentou, as crises financeiras tornaram-se mais comuns e o crescimento económico caiu, à medida que os diretores começaram a concentrar as suas atenções em todos os lugares errados. (…) Entraram pela financiarização. 
Em 2012, Boris Johnson, então mayor de Londres, afirmou: "Uma libra gasta em Croydon vale muito mais para o país do que uma libra gasta em Strathclyde. Pode-se criar empregos e crescimento em Strathclyde com muito mais eficiência se se investir em Hackney, Croydon ou em outras partes de Londres."
Regressando à ideia de Londres como motor da economia, será que Boris Johnson tem razão? Será que apoiando Croydon, Londres e o sudeste da Inglaterra vai gerar riqueza que pode ser distribuída por Strathclyde, na Escócia? Ou Londres é o centro de uma máquina financeirizadora que suga poder e dinheiro das periferias? Pode uma City of London superdimensionada e o resto da Grã-Bretanha prosperar lado a lado? Ou, para as regiões prosperarem, a City of London deve ser humilhada? Esta é talvez a questão económica definidora dos nossos tempos, maior do que o Brexit.
Estudos recentes fornecem parte da resposta, sugerindo que o poder da finança de Londres está a prejudicar a Grã-Bretanha em 4,5 triliões de libras. (…) Se Johnson pensa que o dinheiro flui de Croydon para Strathclyde, ele pode ponderar sobre o Centro de Treino e Recrutamento da Polícia de Strathclyde, construído pela empresa de construção Balfour Beatty e inaugurado em 2002 ao abrigo de uma PPP confidencial. Segundo essa PPP, em vez de o governo construir e pagar diretamente projetos como escolas ou hospitais, eles contratam empresas privadas para emprestar o dinheiro da City para financiar a sua construção, sob um acordo que o governo lhes devolverá, por exemplo, 25 anos, com juros e extras (…)
O centro de treino esconde-se debaixo de uma rede corporativa muito complexa. Os pagamentos da PPP fluem do governo para um veículo privado de propósito especial (SPV) chamado Strathclyde Limited Partnership e depois para mais de 10 empresas ou parcerias, para uma firma de Guernsey com capital de 2 biliões de libras, chamada International Public Partnerships Limited (INPP). Depois, através de participações tangíveis, parcerias, acordos bancários e de empréstimo, e advogados e contabilistas cortando taxas ao longo do caminho, para outras pessoas e empresas em Londres, África do Sul, Nova York, Texas, Jersey, Munique, Ontário e muito mais. A tubagem é complexa, mas o padrão geral é claro. O dinheiro flui dos orçamentos da polícia da Escócia, através desses oleodutos financiados e para a City, zonas chiques de Londres e do sudeste e paraísos fiscais. Pelo caminho, fazem-se e distribuem-se os lucros e evitam-se os impostos. 
(…) Dados do Tesouro mostram que, enquanto o custo da construção do centro de treino policial se situou entre 17 e 18 milhões de libras, o fluxo de pagamentos para o consórcio PPP atingiria 112 milhões de libras entre 2001 e 2026, seis vezes mais do que tivesse sido o governo local a construí-lo.(…)
Analisei várias estruturas corporativas de PPPs: cada uma tem uma arquitetura financeira complicada, e cada uma envolve uma chuva de pagamentos das regiões britânicas (incluindo as partes mais pobres de Londres) para esse centro financeiro centrado em Londres, no exterior e em paraísos fiscais. E as PPPs são apenas um componente de uma imagem maior. Cerca de 240 biliões de libras, um terço do orçamento anual do governo do Reino Unido, destinam-se a serviços públicos privados, mas financiados pelos contribuintes, a maior parte dos quais é executada por meio de ligações que se concentram na City.
A imagem de Johnson do dinheiro a fluir de Croydon para Strathclyde coloca-se assim de trás para a frente. Estes são exemplos do que o falecido geógrafo Doreen Massey chamava de “relação colonial” entre partes de Londres e o resto do país. (…)
Atrair enormes quantidades de riqueza estrangeira não cria  serviços úteis para a economia britânica - mas aumenta o poder e a riqueza do setor financeiro, contribuindo para a fuga de cérebros, as crises económicas, o colapso da produtividade, as atitudes predatórias, os empréstimos mal direcionados e a subsequente desigualdade. Receber de braços abertos o dinheiro sujo do mundo está a corromper a nossa política, e está a inflacionar os nossos mercados habitacionais, penalizando os jovens, os pobres e os fracos. Tudo isto atá a agudizar a maldição das finanças.
A finança é uma ótima máquina de classificação geográfica, dividindo-nos em vencedores de offshore e perdedores metropolitanos. Mas também é uma máquina de triagem para raça, género, deficiência e vulnerabilidade – retirando valor daqueles que sofrem reduções nos serviços públicos ou cortes salariais, e de grupos compostos desproporcionalmente de mulheres, pessoas não brancas, idosos e vulneráveis - e transferindo-o para a City. Também é uma máquina de classificação geracional, já que as PPPs, lucros bancários arriscados e jogos financeiros ajudam os vencedores a interferirem hoje, deixando as respetivas faturas para os nossos filhos.
Esta corrente oculta flui constantemente dos cansados, dos fracos, das massas vulneráveis e amontoadas por toda a Grã-Bretanha, através destes canais de filigranas invisíveis para um número relativamente pequeno de homens brancos europeus ou norte-americanos em Mayfair, Chelsea, Jersey, Genebra, Ilhas Cayman ou Nova York. (…)
Por que não podemos fazer algo sobre o poder esmagador da finança? Porque é que os protestos são tão silenciosos? Porque é que não podemos tributar, regular ou policiar as instituições da City adequadamente?
Não o fazemos e não podemos, não só porque o dinheiro da City fala muito alto, mas também por causa de uma ideologia que nos levou a pensar que devemos ser "competitivos". A City faz como outros centros financeiros em todo o mundo, eles choram, e se quisermos ficar à frente nesta corrida, não podemos segurá-la com regulamentações duras, policiais, ou com impostos "não competitivos". Caso contrário, todo esse dinheiro será transferido para Genebra ou Hong Kong. Depois do Brexit, será ainda mais urgente manter essa competitividade. (…) 
Em Inglaterra as pessoas assumem atitudes contraditórias sobre tudo isso. Por um lado preocupam-se com o facto de a City ser um paraíso mundial para lavagem de dinheiro, prejudicando outras nações, mas, muito baixinho, apreciam o dinheiro quente e os oligarcas que ele atrai às nossas terras. (…) 
Nos últimos oito anos, a Grã-Bretanha cortou a sua principal percentagem de impostos corporativos de 28% para 20%, reduzindo as receitas em 16 biliões de libras.
Subjacente a tudo isso está a falácia da composição, em que as fortunas dos nossos grandes negócios e grandes bancos se confundem com as fortunas de toda a nossa economia. Tornar o HSBC ou o RBS mais competitivos globalmente, segundo se diz, tornará a Grã-Bretanha mais competitiva. Mas tendo em conta que os seus lucros são extraídos de outras partes da economia britânica, o seu sucesso prejudica mais a Grã-Bretanha do que ajuda. (…) 
Precisamos de investimento embutido na economia local, que traga empregos, competências e envolvimento de longo prazo, em que os gestores mandam os filhos para escolas locais e os negócios apoiem um ecossistema de cadeias de abastecimento local. E se um investimento for bem incorporado, um cheirinho de imposto não vai assustá-lo. Um investidor que seja mais sensível aos impostos tem, quase por definição, raízes pouco profundas. Assim, os impostos tenderão a desencorajar os investidores mais flutuantes, mais predatórios, mais financeirizados, que trazem menos empregos e vínculos locais, e maiores receitas tributárias corporativas compensam os ingredientes que atraem investidores: estradas, forças policiais, tribunais e trabalhadores cultos e saudáveis. Para prosperar, a Grã-Bretanha deveria aumentar os seus impostos corporativos, pelo menos para financeiros e grandes multinacionais. (…) 
Um país que se envolva numa corrida a sério nestas coisas precisa também de entender que a corrida não acaba quando a percentagem dos impostos atinge o zero. Literalmente, não há limite para o quanto os jogadores corporativos e os ricos desejam libertar-se dos impostos pagos por nós. Eliminem os seus impostos, apaziguem-nos e eles exigirão outros subsídios, tal como o bully no recreio. Porque não?
A agenda da competitividade é uma treta dos milionários. (…)
Não precisamos de  nos vergar perante as exigências de monopolistas, oligarcas estrangeiros, operadores de paraísos fiscais, magnatas de participações privadas, banqueiros demasiado grandes para serem presos ou ordenhadores de PPPs. Podemos taxar, regular e policiar o nosso setor financeiro como é nosso dever. A coordenação global e a cooperação valem a pena sempre que possível, mas não precisamos esperar por isso. E apelando para o interesse nacional, podemos mobilizar o maior eleitorado de todos e colocar a finança no seu devido lugar: servir o povo britânico, não ser servido por ele. (…)»

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