Foto: Ernesto Arias/EPA
«Um homem sem passado conhecido, exatamente por não ser conhecido, pôde chegar a primeiro-ministro de um país.
Bastou-lhe parecer sério, manifestar enfado com a política, colocar a família acima de si próprio e Deus acima de tudo. A Revolução de Abril não conseguiu mudar radicalmente o paradigma salazarista. Deus, Pátria e Família colaram-se no subconsciente coletivo e permitiram que o regime democrático, à falta do defunto, elegesse um avatar.
Ao fim de uma década o país fartou-se dele e o homem tratou da vida, mas a amnésia do povo, que esquece o passado, deu-lhe o benefício da dúvida por mais uma década.
Resistiu à intriga, que correu mal, contra o PM, às explicações exigíveis sobre negócios privados, às ligações com vizinhos de um condomínio de luxo e acabou a estrebuchar contra a formação de um governo que a AR exigia e a Constituição lhe impunha.
Este homem pôde ser tudo em democracia, sem nunca a estimar; representar o País, sem o merecer; presidir ao 10 de Junho, sem ler Os Lusíadas; ser o PR dos portugueses, sem saber o plural de cidadão; jurar respeitar e fazer respeitar a Constituição, sem a prezar; e chefiar a República, para lhe apagar a data no calendário dos feriados.
Para cúmulo do opróbrio, num intervalo da defunção política, no rescaldo das eleições autárquicas, cujos resultados o contrariaram, numa manifestação de indigência cívica e no pior e mais degradante exemplo de cidadania, declarou:
“Acontece que não votei nas autárquicas. Estava num casamento".
O ex-PM e ex-PR e a sua inseparável prótese conjugal preferiram a boda e a missa ao cumprimento de um dever cívico e ao exemplo a que eram obrigados.
Ditosa Pátria!»
Carlos Esperança, in O homem e a sua circunstância - FB.
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