quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Reflexão: «A excentricidade do frio no Inverno»

Foto de Judit Balla. Imagem captada aqui.

A excentricidade do frio no Inverno, 
por Bagão Félix - Público 24jan2017. (excertos)

«De seguida vieram os avisos policromáticos dos serviços do mar, atmosfera e Protecção Civil, uma espécie de meteorológica escala de Richter sem números, mas com cores como o amarelo e o laranja. É a versão tecnocrática e científica do que, antes, se chamava, tão sábia e simplesmente, Inverno e Verão. Técnicos são entrevistados, como se o apocalipse estivesse iminente! (…)

A normalidade passou a ser notícia. Porque a notícia a transformou numa anormalidade. Seria mais previsível que a notícia fosse o calor no Inverno e o frio no Verão, mas afinal o que é agora “alarmante e excepcional” é o frio no Inverno e o calor no Verão. As televisões abrem noticiários dizendo que o (nosso) frio voltou e um ingrato anticiclone se escafedeu. Ridículo dramatismo com reportagens e entrevistas a transeuntes que se lamentam das condições insuportáveis que se abateram sobre o luso território. Pessoas há que, no século XXI, falam do frio como uma excentricidade invernal. Talvez de tanto se falar do “aquecimento global” se tenha interiorizado o fim do frio, que parece agora fazer parte do “esquecimento global” que corrói a memória. Dentro de alguns meses, teremos notícias sobre o calor que se vai abater sobre nós. Aí, lá vamos gramar os avisos de cores variadas, ainda que de sinal contrário, e as estafadas reportagens (?) nas praias de norte a sul. Boa matéria-prima para enfadonhos noticiários de hora e meia, cheios de (pouco) tudo e (muito) nada. As redes sociais — oh essas! — lacrimejam através de testemunhos dilacerantes de pessoas que partilham a gélida sinestesia por via de like e de comentários estapafúrdios. (…)

Esta obsessão tem subjacente alguma infantilização do modo como se abordam certos assuntos do quotidiano. Progredimos em meios tecnológicos, mas parece que regredimos na relação com os outros e com a natureza. Tratam-se as pessoas como inconscientes, néscias e incautas. Será que uma pessoa com frio só pensa em agasalhar-se por causa de um alerta amarelo visto num canal televisivo? A sabedoria popular (“se o Janeiro não tiver trinta e uma geadas, tem de as pedir emprestadas”) evaporou-se, submetida ao monopólio dos gadgets que nos dispensam de pensar? Onde é que está a novidade, a diferença, o alarme? A banalização dos “alertas” acaba por estiolar o sentimento de prevenção individual e colectiva face a situações graves que, infelizmente, acontecem.»

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